sábado, agosto 26, 2006

notas de viagem 8

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
7. higiene oral

Num dia destes, antes ainda da investigação na Irlanda, preocupei-me, já não sei porquê, em saber a origem do termo spa. Se a memória não me falha, creio que foi a Agente Paula (que também esteve na Irlanda, mas por causa de um outro dossiê, que não o da Agente Amélia) quem disse que tinha ganho uma semana num spa qualquer, já não sei donde. Mostrou-me o folheto, e as fotografias eram do melhor, que tinham isto e aquilo, que os seus spadados saíam de lá praticamente novos, e não sei que mais… Perguntei-lhe o que era spa, e ela não sabia. Fiquei com a pulga atrás da orelha, salvo seja. Na altura, até havia um programa na televisão, apresentado por uma rapariga que agora até é actriz e tudo, que nos levava a visitar uma série de spa’s de norte a sul do país. Era uma vida e peras.
Fui investigar e descobri, (não sei se o Chefe já sabia), que Spa é um município da Bélgica com cerca de dez mil habitante e quarenta quilómetros quadrados de área, muito conhecida do mundo do automobilismo, mais em concreto do mundo da fórmula um. O circuito chama-se Spa-Francorcha e se disser este nome aos malucos dos carros, eles lembram-se logo.
Mas Spa é, igualmente, uma região muito conhecida pelas suas águas, propícias a tratamentos medicinais variados. Creio que são usadas de forma terapêutica desde o século XIV. Por curiosidade, foi também, em Spa que esteja alojado o quartel-general das tropas nazis aquando da brutal caminhada para o falhado império boche nos idos de quarenta e picos.
Voltemos, porém, ao nosso tema, e sem mais desvios:
Ora, as estâncias termais são coisa mais ou menos comum em Portugal, onde elas abundam. Em Portugal chamavam-se Termas. Mas agora é spa que está na moda. Ora, Spa significa saúde através da água (em latim, sanus per aqua).
Regressemos, então, à Irlanda.
Estava eu a passear no centro de Dublin quando, num repente, descubro um grande edifício e uma placa informativa a anunciar que nesse edifício funcionava um spa de dentes. De dentes. Espreitei, pedi para espreitar mais intimamente o spa, e lá estavam, visíveis, as bancas como acontece numas termas normais, todas alinhadinhas, tudo muito higiénico, tudo muito cleen.
Imagino máscaras de lama nas dentuças dos irlandeses, massagens às gengivas, gemidos de prazer vindos das entranhas do edifício caro restaurado e a cheirar a novo e velhinhas à porta a pedir por tudo o que é santo, um tratamento «igual ao daquela senhora».
Saí do spa a rir a bandeiras despegadas, Creio que os meus dentes ficaram mais felizes com as gargalhadas. Valeu a pena a visita.

notas de viagem 7

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
6. Animais


Caro Chefe,
Como sempre acontece – pelo menos é o que acho – as terras que visitamos pela primeira vez dão-nos coisas que, muitas vezes, ou nunca tínhamos experimentado ver, ou então que correspondiam mais ou menos às coisas que íamos de antemão preparados para ver. Por exemplo: ao ir para a Irlanda com o fito de escrever este relatório, já sabia que ia encontrar ovelhas em barda. A agente Amélia, por exemplo, que em tempos lá foi a propósito de um caso qualquer, lembra-se?, já me tinha prevenido – com fotografias e tudo que tirou da net – da presença massiva desses animais lãzudos. Das ovelhas, por isso, já eu estava à espera. Até estranhei não as encontrar logo no aeroporto. O que eu não esperava, (que para isso ninguém me prevenira) era que, mais que ovelhas, a Irlanda fosse a terra de cavalos. Principalmente o sul. Tanto cavalo, c’um raio. Na estrada cruzei-me com imensos carros munidos de atrelados para transporte desses seres. Há, aliás, no sul do país, mais precisamente em Connemara, (nunca me hei-de esquecer deste nome por mais anos que viva), uma raça de cavalinhos de perna curta, (dos que, portanto, não vão longe), que dizem ser espanhóis. Bom, eles não dizem nada, coitados, que não têm atributos para isso, embora façam muitas coisas e sejam espécie protegida & tudo. Mas os nativos da ilha dizem-no abundantemente por eles. Os bichos terão chegado à Irlanda vindos de Espanha. Estariam, pensa-se, em trânsito para algures, mas um naufrágio inesperado (como todos os naufrágios, creio), tê-los-à feito aportar em Connemara (que raio de nome, palavra de honra!). Outras vozes dizem, à boca cheia, que os cavalos deram à costa nadando de Espanha para cá, fartos do país de origem… Mas eu nisso, confesso, já não acredito. Acho mais crível que tenham sido para lá levados pelos galeões espanhóis, e por lá ficado para fazer criação, tipo famílias numerosas.
Bom! (parecia, agora, o Marcelo Rebelo de Sousa… Chiça!). Tendo a razão do seu aportamento sido acidental ou não, o que é facto é que os cavalos são de origem espanhola. E sabe-se isso como? Ainda segundo os mesmos especialistas, constata-se a origem das cavalgaduras pelas patas achatadas e peludas, que sapateiam à andaluza sempre que alguém se aproxima e faz sonar um par de castanholas. Aqui está outra coisa em que eu não acredito.
Os cavalos, aliás, (os dessa raça precisa, pois, mas todos os outros também), são muito apreciados neste país, como se comprova pela quantidade de corridas anunciadas, o que torna essa modalidade um dos desportos mais populares por aqui. Ou as corridas não propiciassem o jogo, e o jogo não fosse, esse sim, desporto nacional número um.
Para além de cavalos, a Irlanda é, igualmente, o país das vacas. Tanta vaca pastando Irlanda fora, meu Deus... E corvos? Acho que nunca vi tantos corvos na minha vida, chefe. Para onde quer que olhasse, lá estavam eles à procura da sua sobrevivência, ora olhando cuidadosamente o horizonte, ora esgadanhando o chão, na estrada ou na berma dela, por onde quer que eu passasse. Numa ocasião, sentado num Parque, comendo uma sandes de coirato, (não era bem coirato, mas, pronto, dava ares), vi-me cercado por tantos, esfomeados, que esperavam que eu abandonasse o banco de jardim, para se banquetearem com as migalhas que eu deixara cair. O desespero dos bichos era tanto que um ou outro mais afoito (ou aflito, não sei), não se coibiu de se aproximar e, nas minhas barbas, roubar-me a migalhinha caída aos pés. Os outros, claro, vieram logo a seguir. Com pena da bicharada, abdiquei de alguns bagos de uva que estava já a comer e lancei-lhos, um a um. Os gajos, caramba, pareciam guarda-redes a voar para os esféricos, prendendo-os com o bico, e engolindo-os de uma vez só. Chamaram-lhes um figo, essa é que é essa... Intimamente, ceio que me terão erigido uma estátua naquele parque, tal o entusiasmo demonstrado. Suponho ter ouvido uma salva de palmas (ou salva de asas) quando lhes virei as costas para me ir embora.
Para além destes animais, e pertencendo a outro grupo, há ainda a considerar os cabeleireiros. Nunca tinha visto um aglomerado de cabeleireiros, como o que assisti na Irlanda. E não significa isso que as pessoas andem melhor apresentados. Nada disso. Na verdade, a bota não condiz com a perdigota. Não há risco ao lado ou risco ao meio que justifiquem tanta casa aberta a chamar clientes. Mas lá que há imensos salões de cabeleireiros em toda a parte, às vezes na mesma rua, quase porta com porta, lá isso há. Comparável, em número, com estas casas comerciais, só as casas de apostas e as casas de tatuagens. Mas sobre estes últimos já escrevi.
(…)Com a proliferação de ovelhas, acredito que tosquiadores fariam muito mais jeito, aqui.

notas de viagem 6

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
5. A cultura B & B


Chefe,
Entro agora num dos capítulos mais interessantes do meu relatório, até porque durante os dias que permaneci em terras irlandesas, em nenhuma das casas onde pernoitei me foi pedido qualquer documento de identificação. Veja lá bem. Perceber-se-á, por isso, como pode ser complicado descobrir um fugitivo numa terra destas. Mas vamos aos factos.
Ao longo das estradas que bordam a paisagem irlandesa, os anúncios gritam nas bermas, chamando os corpos cansaços a um merecido descanso. Berram a cores: B & B.
Não é, afinal, impunemente, que por aqui se abandonam as regras mais básicas da condução automóvel inteligente.
Talvez valha a pena fazer aqui um parêntesis. Curvo.
Parêntesis:
Na Irlanda o código das estradas determina que circulemos pela esquerda. Que entremos nas rotundas virando sempre à esquerda e não noutro sentido qualquer. Por isso, os instrumentos de navegação, estão postos ao contrário do habitual: volante à direita, travão de mão à esquerda, manéte das mudanças à esquerda… os piscas ao contrario de cá… o lugar do morto - o diabo seja cego surdo e mudo – é o lugar que o condutor ocupa cá… etc etc etc! Felizmente que os pedais estavam, pela mesma ordem, no sítio dos pés, e não no tejadilho da viatura.
Fecho o parêntesis.
Ora, depois de umas horas a conduzir ao contrário do que instinto dita, o descanso é mais que merecido e surge como prémio para tamanho cansaço provocado e acumulado pelas mudanças revolucionárias. Aceito, pois, como coisa boa, irrecusável, o chamamento da placa e estaciono no parque de uma das primeiras casas que me aprecem, na terra onde planifiquei pernoitar. E escolho um B & B por muitas razões: porque, Um, o cansaço é grande, pois, já o escrevi; mas também porque, Dois, os preços são mais convidativos que os habituais hotéis. E por último, mas nem por isso menos importante, porque, Três, o clima nestes B & B é muito mais intimista – mesmo, familiar – que nos hotéis, por muito pequenos e caseiros que prometam – e cumpram – ser.
A coisa funciona mais ou menos assim: se alguém tem uma casa simpática, (ou nem por isso, não percebi quais eram os critérios), pode propô-la para integrar uma espécie de rede de abrigos caseiros. Oferece-se um quarto, mais ou menos organizado, com ou sem casa de banho, (preferencialmente com), e no dia seguinte, de manhã, confecciona-se e serve-se o respectivo pequeno-almoço. E as casas B & B (bad and breakfast – cama e pequeno-almoço) proliferam em anúncios variadíssimos, (à primeira vista, parece estarem afastadas todas as possibilidade B & B no centro das cidades de dimensão superior).
Há casas mais interessantes onde se ficar (e, igualmente, sítios mais bonitos que outros), e outras menos interessantes. Como em tudo na vida.
Na penúltima casa em que fiquei, fantástica, para além da qualidade do alojamento – uma casa cheia de bom gosto, bem equipada, bonita, decorada como se fora uma casa (e um quarto) igual a qualquer casa de família que se preze, – tinha, anda, a seu abono, o serviço de um pequeno almoço verdadeiramente exemplar. Senão, veja-se a lista (em anexo segue uma foto do cardápio, chefe!):

Chilled fruit juice
Cornflakes
Muesli
Rice-crispies
Bran-flakes
Weetabix
Porridge (on request)

Tradicional Irish breakfast
Eggs cooked to your taste
Fried-scrambled-poached or boiled
With the choice of the following
Bacon
Sausages
Tomatoes
Black & white pudding

Beked beans on toast

Pancakes served with a topping of fresh fruit

Claro está que quis experimentar de tudo, até porque fiquei instalado nesta casa duas noites de seguida e tive tempo, portanto, para isso. O pequeno-almoço irlandês é uma coisa absolutamente incrível. Para além dos ovos, estrelados ou mexidos, há ainda bacon frito e salsichas. Isto para além de feijões guisados (do género manteiga, não sei se está a ver... brancos…) em cima de uma tosta; ou uma espécie de enchido à base de sangue, que depois de curtido – não sei se pelo fumo se de que maneira – é igualmente frito; para além de tudo isto, há ainda a considerar o tomate – finalmente um vegetal – levemente cozido e finalmente passado por uma grelha de calor; e, o melhor de tudo, panquecas de que envio fotografia para apensar ao processo. Dizem-me que há, também – mas não constava no cardápio – a incontornável batata, cozinhada de uma maneira esquisita, que não tive oportunidade de degustar.
Mas voltando ao princípio, Chefe, o estranho é nunca me ter sido pedida, em circunstância nenhuma, identificação.
Começo aqui um outro parêntesis, se me permite, Chefe!
Parêntesis:
Curiosamente, quase não dei pela presença dos nossos camaradas, polícias locais, designados por estas bandas por GARDA. O nome faz lembrar os nossos guardas, não é?, mas aqui, efectivamente, significando polícia. Por curiosidade, Chefe, o plural de GARDA é GARDAI. Claro está que estamos perante a língua irlandesa ou gaélica, que até ao século XVI foi a língua oficial da Irlanda, tendo entrado depois disso em declínio, muito por culpa da Inglaterra colonialista, digo eu. Actualmente a República é bilingue.
E o chefe sabia que para se entrar na Função Pública, é necessário falar irlandês? E que os estudantes, para frequentar as instalações universitárias depois de cumprido o ciclo secundário – chamemos-lhe assim – têm de falar gaélico? Apesar disso, só cerca de onze por cento da população fala fluentemente a língua. Mas está a crescer, fruto também dos programas de rádio e televisão – vários – onde a língua falada é o irlandês. E até na toponímia, muitas informações são já dadas nas duas línguas. Nos caixotes do lixo, por exemplo, em estaque está a palavra BRUSCAR e só muito sub-repticiamente e que aparece o substantivo em inglês: litter.
Fim de parêntesis.
Mas estava a falar da ausência da polícia. É que nem apeada nem automobilizada. Nos últimos dias sim, um pouco mais. Ou porque eu estivesse mais atento, ou porque, por razões operacionais, eles passaram a estar mais visíveis.
Concluindo este item do relatório, Chefe, chamo a atenção, uma vez mais, para a dificuldade de encontrar qualquer fugitivo que escolha esta terra para se esconder.

outro intervalo na narrativa irlandesa

S. Bartolomeu dos mares – Esposende – vinte e quatro de Agosto

A praia está pejada de pessoas. Está – talvez seja melhor dizer assim – inundada de gente, qual mar qual carapuça, que o que ali há naquela praia, paredes meias com Esposende, é um mundo de gente que chega de todos os cantos do Minho, e “mais atrasado” (como gostam de dizer), de todos os “estrangeiros” para onde se degredaram, (exílio voluntário uma ova, que há muitas maneiras de fazer uma pessoa ir embora, zarpar daqui). Talvez sejam, até, em maior número, estes estrangeiros que chegam e que falam uma língua estranha, misto de português e de outras línguas, mestiçagens involuntárias, somas mal feitas. E ali, todos juntos, descomplexadamente, o ruído dá num linguarejar diferente, uma fala mais aberta, as vozes mais estridentes, o entoar mais folclórico, o som mais vogálico que aquele que estamos habituados a ouvir nas esquinas das cidades onde nos cruzamos com o resto do nosso mundo. Mas ali não, ali é diferente, é uma praia só deles, cheia deles, cheia de gente igual que, assim juntinha, formam uma espécie de mundo á parte, sem peias nem ameias, um mundo enfim liberto do espartilho da clandestinidade, da marginalização, um mundo construído só por gente marginal, iguais entre iguais, gente que, amando Portugal, também odeia a pátria, o país que os expulsou e que não os quer iguais aos que resistiram e que por cá ficaram, e que venceram vá lá saber-se que campeonato – talvez o da sobrevivência – mesmo que essa vontade de ficar apenas tenha sido covardia na hora da partida.
E agora ali estão eles, à espera do banho santo onde os homens do oleado amarelo hão-de mergulhar os seus filhos nas três ondas a seguir à sétima, que é aquela que conta, e os rebentos hão-de chorar em francês e em alemão, que nunca aprenderão a derramar lágrimas em português. Mas ali ninguém nota, afinal são apenas lágrimas salgadas aquelas que regam o oceano do medo pacificado, mas que valem bem a pena, que a língua que falarão, naquele misto de línguas, nunca há-de conhecer a gaguez.
E hão-de dar não sei quantas voltas à capela (creio que três por fora e três por dentro) com um galo preto nas mãos, galo que acabará o dia enjoado de tantas curvas e de tantas mãos, aguenta-te animal, que agora só para o ano tornarás a passear nas mãos de gente assim, isto se chegares até lá, se a tentação de um pica-no-chão não for maior. Quem traz galo leva o galo, e se calhar, abençoado; quem não traz, aluga, que a capela tem capoeira.
E hão-de ir na procissão, e hão-de dar a marradinha da ordem no altar do santo, e hão-de comer melancia, e hão-de ser felizes, Deus queira que sim, que isso é que é o mais importante.
São Bartolomeu dos Mares, rogai por nós.

sexta-feira, agosto 11, 2006

UM INTERVALO IMPREVISTO

Na rua a canícula acentuava-se a cada estrada atravessada.
Naquele restaurante indiano, o que mais apetecia no momento, era a concretização da promessa do ar condicionado. O ambiente era óptimo. A decoração condizente com a promessa da Índia numa rua popular de Lisboa.
Estabilizada a temperatura corporal, era agora tempo de acalmar o estômago.
O almoço prometia. E a promessa, verificaria pouco depois, haveria de cumprir-se. O almoço, de facto, estava bom. O frango estava bem temperado; o caril estava no ponto; o arroz colorido fundia na perfeição com o caril que aconchegava o frango; os molhos aromatizavam o pão de alho; o chá reconfortava a língua levemente agredida pelo picante que apetecia. Até a TV, na parede do fundo, emoldurada pelos objectos que citavam a cultura indiana e que cercavam a mesa onde me sentava, exibindo música disco originária da índia, mesmo se influenciada pela cultura ocidental mais ou menos pop, não perturbava o clima, antes fazia adensar o ar misterioso de uma cultura distante, mesmo se presente e aparentemente próxima, por força do crescimento de estabelecimentos comerciais como aquele. Mesmo os mais requintados, como parecia ser o caso.
De repente, uma quebra de energia. A iluminação eléctrica desenhada para aquele espaço desapareceu num clic do quadro eléctrico, e apenas a luz do sol, coado pelas cortinas densas, deixava vislumbrar os objectos e os clientes em volta. A TV esqueceu as imagens e ficou cínzea na esperança do milagre outra vez. Um leve movimento invisível de alguém, e a luz tornou à sala. E por um momento, milagre!, a TV ganhou cor e língua pátreas: no canal 1 da RTP, o Padre Borga a cantar não sei bem o quê e a gingar a propósito. Afinal, estava em Portugal, nada mudara. A mentira do DVD instalar-se-ia imediatamente a seguir. Tornavam as meninas indianas e os bailarinos contorcionistas a ocupar o lugar que, por momentos, fora do padre português que tem apelido de festa no nome e canta Deus como se Deus fosse um ícone mais ou menos pop-proximo. O Disco podia continuar a ser servido, junto com a ilusão de um outro lugar. O serviço religioso tornava a colocar o mundo no centro, no centro do corpo, no ventre onde se quebram e contorcem as bailarinas da música indiana.

notas de viagem 5

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
4. A GRANDE FOME

A oferta generosa de batata frita na ementa irlandesa deve-se, talvez, à fome que matou, no século dezanove (1845-1848), mais de um milhão de irlandeses. Uma praga letal instalou-se na cultura da batata fazendo diminuir drasticamente a produção deste alimento durante quatro anos. Isso e algumas jogadas da aristocracia inglesa proprietária da maior parte das terras, de modo a subjugar uma população sedenta de independência, que conseguiria alcançar em 1934. Com a fome instalada em toda a ilha – excepto nas casas dos abastados aristocratas ingleses – aos irlandeses restava, para além da morte sub-nutrida, a fuga para estrangeiro, sendo a América do Norte um dos destinos privilegiados. O incontornável mar foi a estrada escolhida. E eles partiram, primeiro nos barcos possíveis e, depois, a bordo, principalmente, dos grandes vapores. O Titanic, por exemplo, barco de enormíssima escala (curiosamente construído na protestante Belfast), como era costume entre os grandes navios da época que frequentavam aqueles itinerários, fez uma última escala em Cobh (uma das três ilhas do porto de Cork), e no seu bojo, em terceira classe, viajaram e morreram centenas deles, já em 1912, muito depois, portanto, da crise esfomeada que marcou a história irlandesa. Marcas dessa acostagem existem abundantemente nesse belo porto de Cobh, então chamado Queenstown, devido à visita da Rainha Vitória em 1849, e rebaptizado conforme o original, em mil novecentos de vinte e um.
Contas feitas, terão estado no grupo dos emigrantes fugidos à fome, nos anos quarenta, mais de milhão e meio de irlandeses.
Consequência deste êxodo que entretanto se prolongaria pelos anos adiante, já restabelecida a agricultura com o cultivo normal da batata, num senso de 1900, cinquenta anos depois da GRANDE FOME, como ficou conhecida, concluiu-se que uma população de oito milhões de pessoas tinha decaído para pouco mais de metade.
Ora, como diz o povo, - pelo menos o nosso -, para grandes males grandes remédios. Ou, mais exactamente aplicado a este caso, o dito não há fome que não dê em fartura, tem aqui um sentido ainda mais sagaz. A batata frita é, agora, uma espécie de vingança gastronómica.

notas de viagem 4

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
3. A GASTRONOMIA

Sem tatuagem para fazer, com a barriga da perna despida da informação que lhe queria emprestar e que me camuflaria, decidi encher a outra barriga, a verdadeira, com as iguarias locais, que o barulho das horas anunciadas a cada passo era já chinfrineira infernal. Acerca do pequeno-almoço, por estas bandas chamado breakfast, que não quer dizer o primário intervalo rápido, mas sim intervalo no jejum, escreverei um capítulo lá mais para a frente (depende a maneira como o chefe ler este meu relatório…).
Vamos, por isso, ao jantar. Ao primeiro jantar.
Antes, porém, de dar ao dente, e para fazer a cama ao petisco, uma passagem supersónica por um pub da zona do Temple Bar, uma zona tipo Bairro Alto mas menos freack. Aliás, fiquei a saber nesta viagem à Irlanda, que PUB significa Public House, ou Public Bar. Alguém na nossa esquadra já o sabia? Creio que não. Estas viagens, mesmo se em serviço, também servem para acrescentar os nossos conhecimentos do mundo.
Bom, estava eu no tal PUB e, oh sorte madrasta, concluí, apesar de apreciador da boa cerveja lusitana, que não gosto de Guiness. Antes que alguém o descubra por outras fontes e me dane o juízo, confesso-o de consciência tranquila, até porque tentei mais de uma vez emborcar a coisa espessa, negra e amarga a que chamam a instituição.
Depois dessa fracassada tentativa – com esforço lá engoli a pint – e parti para o restaurante escolhido anteriormente. Entre descodificar a ementa e uns quantos olhares aos pratos que iam saindo da cozinha, percebi que tudo era servido acompanhado de batata fria. Depois de algumas dúvidas e hesitação natural, encomendei lasanha, que era, talvez, a coisa que mais se assemelhava com o que conhecia de antemão. E, passado o tempo de confecção, ela lá estava, a lasanha, acompanhada de batata frita: um prato largo cheio delas, batatas, e no meio, tipo ilha, dentro de uma taça de louça, a lasanha. Perto, igualmente dentro do tal prato maior, mas numa outra tacinha, um molho qualquer que me pareceu perigoso e no qual, por isso, nem ousei tocar. Para a mesa ao lado estava a sair peixe frito, igualmente acompanhado de batata… frita.
Durante os dias que permaneci na parte católica da ilha, as comidas foram, mesmo se variassem, basicamente servidas com os mesmos sabores, e com recurso aos mesmos alimentos, sendo a batata frita o mais comum deles.
A obesidade é uma nota constante em quase todos os sítios que visitei. Homens e mulheres assim a atirar para o gordo (com alguma excepções), tatuados, e a comer batatas fritas.

sexta-feira, agosto 04, 2006

notas de viagem 3



AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO

2. ZIDANE A QUATRO PATAS


«Não há duas sem três», mesmo se neste caso, apesar da boa vontade, a contagem não ultrapasse as «duas». Mas como a expressão é «não há duas sem três» e não «não há duas sem uma»…
A estória é esta e estava escarrapachada em várias primeiras páginas de jornais irlandeses:
Um jockey irlandês, de nome Zidane, perdão, de nome Paul O’Neill, durante o campeonato do mundo de futebol, perdão, durante uma prova equestre em Inglaterra, mais precisamente em Berlim, perdão, em Stratford, sofreu ofensas de que não deve ter gostado, vindo do seu adversário Materazzi, perdão, do seu camarada de competição, um elegante cavalo azul, perdão preto, e desgostado pela prestação da montada, agarrou as rédeas do bicho com ambas as mãos, puxou o camarada para junto de si, e com a cabeça do galopante ser ao alcance do seu corpo, ou melhor, da sua cabeça, inspirado no exemplo do capitão da selecção gaulesa, e protegido por um bonito capacete, cabeceou o bicho, respondendo à humilhação recebida com o castigo que entendeu exercer.
A Federação equestre inglesa não quis pronunciar-se.
Os juízes, consta, primeiro argumentaram que nada viram, e depois riram. Pudera, o caso não era para menos.
O jockey disse que era uma maneira carinhosa de chamar a atenção da montada para a sua falta. O cavalinho não disse nada.
Nem um relincho.
O silêncio imperou.

notas de viagem 2
















AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
1. TATUAGENS

A duas horas e meia de caminho, a Irlanda é um destino muito interessante para passar uns dias de descanso. Do Porto voa-se directamente para Dublin, e essa é uma vantagem.
Eu, Agente Importante Chamado Ernesto, fui com o objectivo de fazer uma tatuagem, e não podia ter escolhido melhor sítio. Quanto mais clandestino e ignorado pela multidão conseguisse ser, melhores resultados estaria em condições de obter.
Logo na viagem de ida se manifestou uma realidade diferente. Muita gente irish ostentava nos braços, e outras partes do corpo visível, sinais e desenhos que ilustravam peles com história publicada. Uma espécie de banda desenhada que se transporta no órgão mais extenso que possuímos: a pele. A minha, de agente muito batido, apesar de pendurada aqui e ali, ainda estava em condições de passar por mais esta provação.
Ainda por cima, a tatuagem, na Irlanda, não é uma moda juvenil nem coisa que o valha. Falo de gente com cinquenta ou sessenta anos, de braços absolutamente decorados, roliços e cheios de tinta, com cores ou só a preto e branco, que é como quem diz, da cor da pele. E inúmeros reclamos que indicam sítios onde a tatuagem está ali à mão de semear.
Pedi que me fizessem uma sereia na barriga da perna, mas só havia disponível um retrato de Daniel O’Conner, um dos libertadores da Irlanda. Só por isso deixei a tatuagem para outras núpcias. Achei que seria o mesmo que, correspondência à parte, em Cuba, mandar tatuar barbas na cara imberbe que Deus me deu: via-se mesmo que estava a dar graxa. Era demais. Cancelei os planos e, adiante.

notas de viagem 1

IRLANDA
Como é que um país com oitenta e quatro mil quilómetros (mais quatrocentos e trinta, para sermos precisos) e cerca de três milhões e meia de habitantes, consegue um nível literário, técnico, artístico e científico tão acima de nós, Portugal, feito de mais gente mais quilómetros e mais história independente?
A verdade é que, como os homens não se medem aos palmos, os países também não se medem ao quilómetro. Nem conforme o número de habitantes. Há muito mais vida para além dessa simples aritmética. A não ser assim, como se compreenderia que a Irlanda tenha já no seu bornal-curriculum quatro prémios Nobel da literatura (Shaw, Yeats, Beckett e Seamus Heaney)? E Wilde não consta desta lista. E tantos outros. E na música? Quantos autores e/ou grupos, desde a pop à música mais erudita, não conhecemos?
Tudo, porventura, por casa da batata. Mas lá iremos.
Fui durante meia dúzia de dias, tentar descobrir toda a verdade por trás desta cabala da inteligência. São algumas d’ AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO que agora se publicam. Não são muitas, mas são as que constam dos meus relatórios, agora publicáveis, depois de limpos do que não se pode dizer em voz alta.