domingo, dezembro 15, 2013

Mandela


Das tantas coisas que aconteceram nas últimas duas semanas, há uma que se impõe por todas as razões e por mais umas quantas: a da morte de Nelson Mandela. E pronto. Morreu. Mais uma vez. O homem que sobreviveu a tantas mortes publicitadas, parece que morreu mesmo, desta vez de forma definitiva. Pelo menos de forma oficial, já que o presidente da África do Sul veio comunicá-la ao país. E quando uma morte mete presidente da república...
Os jornais, e de resto todos os órgãos de comunicação social, apressaram-se a inundar os seus canais de informação com as tantas coisas que entretanto tinham vindo a organizar, arquivando, sobre a personalidade e sobre a obra de tão insígne figura. O jornal Público, segundo alguns especialistas, terá mesmo logrado fazer uma das dez mais interessantes capas, com a notícia da morte. O que significa que até a morte trás benefícios a alguns... É preciso, é saber. Ou não saber, que os outros inventam para si...
E aqui, neste momento da história, entramos numa coisa que me faz muita impressão: o obituário.
Bom, o obituário é uma espécie de jogada de antecipação dos media, à óbvia humanidade, ou fragilidade humana das pessoas. Se se sabe que todos morreremos algum dia, e se essa hora parece estar a aproximar-se mais desta ou daquela criatura, por esta ou por aquela razão, toca de preparar a página de necrologia, afiar os lápis e, mais do que isso, escrever umas quantas laudas à personalidade deste ou daquele, desde que a vida ou a obra justifique a tinta e a electricidade que há-de ser gasta com tão ilustre personalidade. É como se, em vida, na sua recta final, se lhe antecipasse a morte, à sombra de uma quaquer ideia de competição com os outros media, no afã de se ser o primeiro a chegar à saudação épica da criatura que agora mesmo expirou. Quase que dava para dizer que se estava lá, no momento da exalação do derradeiro suspiro, se é que é disso que se trata: suspiro e derradeiro.
E depois entra-se noutro território que é o laudatório, como se a morte servisse de lixívia e lavasse para todos os gostos e fizesse desaparecer as nódoas mais entranhadas. Na perspectiva de cada um, note-se bem...
Com a morte de Mandela, e como sempre acontece, proliferaram as declarações provenientes dos mais variados sectores, com os mais improvável protagonistas. Há, na morte, um apelativo qualquer que chama uns e outros à memória mais recôndita e mais aconchegante aos interesses de cada um. Com Mandela a coisa assumiu contornos no mínimo pornográficos. Mas é sempre assim, diga-se. Da esquerda à direita, e perante a mesmíssima vida, os mesmíssimos factos, se construíram verdades absolutas que servem na perfeição a uns e outros. Até o presidente da república portuguesa, na altura primeiro ministro, helás, numa declaração que era já um ajuste, ou acerto, a uma declaração anterior a propósito de uma votação na ONU em que se opôs á libertação de Mandela, ao lado da Inglaterra e dos Estados Unidos (a cuja lista de terroristas perigosos Mandela deixou de pertender em 2008... santo deus... quando fez noventa anos... como um presente de aniversário...), disse que Mandela percebera lindamente a posição portuguesa (e a dele, Cavaco), e que essa percepção terá levado o líder sul africano a abandonar a via armada enquanto caminho para os seus objectivos libertadores e anti-racistas. Cavaco é a prova acabada do ser capaz de tudo...
O funeral é um dia destes e, já se sabe, dois dos oradores são Raul Castro, o irmão do lendário guerrilheiro cubano ao lado de quem Mandela sempre esteve, e Obama, negro como Mandela, líder da nação que votou contra a sua liberdade, tal como perseguiu, por razões idênticas, Martin Luther King.
Para já, os órgãos de comunicação social rejubilam com o aperto de mão trocado entre Raul Castro e Obama, inspirado pela presença tutelar, mesmo que fúnebra, de Mandela.

segunda-feira, dezembro 09, 2013

menos uma


Quando eu era mais pequeno, menino mesmo, tive sempre alguma dificuldade em viajar de comboio e, dessa maneira, beneficiar do desconto que o estado, e a companhia de caminhos de ferro, atribuíam às crianças como eu era. Tinha, avisado, de ter sempre à mão o bilhete de identidade e, antes dele, a caderneta ou certidão de nascimento, para atestar da minha real idade. Mas logo que se deslindava o mistério - um tipo tão grande que ainda não tinha os doze anos da praxe, creio que era essa a regra - logo o desconto fluía para descanso dos meus pais e para meu desespero, por nunca mais ser merecedor do bilhete por inteiro, ou seja, ser homemzinho de corpo e bilhete por inteiro.
Com o vinte e cinco de Abril veio um outro desconto, o que beneficiava a população mais velha, com os mesmíssimos cinquenta por cento que mantiveram para a população infantil. Para além desses descontos, havia – como há – descontos para militares e outros grupos seleccionados.
E assim se tem praticado até agora, até chegar à praça, Passos Coelho e o seu governo.
O secretário de estado dos transportes, no que a estes descontos diz respeito, já avisou: os descontos foram chão que já deu uvas, e ele prevê agora uma mudança radical em tal prática, preparando-se para limitar esse benefício a uns e a outros. Ao grupo a que já pertenci, deverá ocorrer um corte parcial; ao grupo a que agora mais me interessa, e a que espero pertencer daqui a uns aninhos, ou seja, o grupo dos velhos, o corte deverá ser total. ‘Ide passear para o raio que vos parta’. Não o disse assim, mas deve tê-lo pensado...
E um a um, pouco a pouco, ou muito a muito, todas as pequenas regalias de que fomos gozando, vão sendo descartadas até não sobrar nada à nossa fragilíssima condição humana, fica apenas o cidadão, vá lá vá lá, ele só, entregue a si próprio, à sua condição miserável se porventura tiver o azar de não ter em quem se apoiar, longe das grandes decisões do poder, inválido, frágil, à mercê dos cães vadios.
Nessa altura, os resquícios do edifício do estado social que ainda se podem encontrar aqui e ali, ruínas já, mas ainda assim pedras ao alto, já não servirão de amparo a coisa nenhuma nem a ninguém, será o salve-se quem puder, cada um por si e ninguém por ninguém. Será tempo, ainda mais do que hoje, para o primado da individualidade.
Mário Soares, o homem que em tempos engavetou o socialismo, parece – no vazio que hoje experimentamos – o único capaz de usar a voz mesmo que já débil, para dizer o que ninguém se atreve a dizer: que é importante desviar-mo-nos do rumo que alguns traçaram para nós, enquanto corpo colectivo, e que brevemente, com as práticas administrativas que vamos sofrendo, grassará a violência, mesmo que os sinais aí estejam e nos digam que ela chegará muito mais cedo do que imaginamos.
Do alto dos seus oitenta e não sei quantos anos, gritou para Belém e para s. bento: ‘demitam-se. Se não conseguem falar com o povo no seu conjunto (mesmo que eu não saiba o que isso seja), abram alas para outros que façam dessa politica, uma prática indispensável’.
Cavaco parece que estava de orelha à escuta, encostada à porta da aula magna. No último dia, no último momento, já depois de ecoarem no país os brados soaristas, enviou para o tribunal constitucional alguns dos diplomas que o governo se preparava para votar e aprovar, sem que ninguém ousasse a coragem necessária para gritar e, tão importante quanto o grito, fazer-se ouvir, contra os enunciados apresentados, vencendo a letargia reinante.
Valham-nos agora os juízes de tribunal constitucional que, por estes tempos, são os novos heróis lusitanos. Não há, como nas palavras de Ricardo Araújo Pereira e que eu corroboro, função mais sexy que ser-se juíz do tribunal constitucional.
Se não forem eles, o poço ficará mais poço, o fundo cada vez mais fundo. O orçamento foi aprovado ontem ao mesmo tempo que, nas ruas, era reprovado.
Aguardemos pois.
A esperança não é muita, mas enquanto o pau vai e vem, como diz o povo, folgam as costas.