histórias de um teatro a repensar
O epiódio de sábado passado, que envolveu o presidente
da república, auto-mobilizado em direcção ao teatro do bairro alto, sede da
histórica cornucópia, horas depois de se saber que o recital desse dia seria o
último acto público da sua vida, desiludida e cansada pelo passado recente e
desesperançada no futuro adivinhado, revela muito do que é a política
portuguesa e o entendimento que todos fazem da coisa cultural e, mais
especificamente, da coisa teatral.
Mesmo que se pense que o teatro tem um peso e um reconhecimento
que na realidade não tem, ainda assim, tem-no em dose suficiente para tirar um
presidente da república do seu sossego de sábado, um ministro da cultura de uma
viagem oficial a castelo branco, e pô-los a caminho de uma sala de teatro para
o espectáculo político que não estava anunciado.
Recapitulemos:
Luis Miguel Cintra, líder da histórica cornucópia,
companhia co-fundada com Jorge Silva Melo antes do vinte e cinco de abril, e
co-dirigida com Cristina Reis, uma muito discreta e singular cenógrafa
portuguesa, anunciou o fim da sua vida. Explicou as razões, ele que já no ano
passado anunciara a sua retirada dos palcos portugueses na qualidade de actor
por questões de saúde. Desta feita, era o anúncio da retirada de circulação da
sua companhia, depois de quarenta e três anos de actividade.
A notícia, triste-tristissima, denunciava obviamente a
situação calamitosa em que se encontrava a sua companhia, mas por acrescento
não dito, o teatro português. E se é verdade que teatro haverá sempre, com ou
sem cornucopia, com ou sem luis miguel cintra, nao é menos verdade que o
encerramento de uma estrutura como a que ele liderou, representa uma perda
inestimavel.
Propôs o presidente da república, pelo menos foi isso
que percebi das notícias que fui lendo, um estatuto de excepcao para esta
estrutura. Depois percebi que isso a isentava dos chatos concursos e etc...
Não vejo porque não. Mas tb não percebo como é que
isso pode ser possivel à luz difusa da candeia da demcracia.
Mas o que percebo ainda menos, é como um gesto desta
natureza, não faz pensar sobre a realidade do teatro em portugal e se faz,
finalmente, excepção sobre essa realidade. Se estuda e se resolvem os tantos
problemas de que padece. Bem sei que as questões a discutir são tantas, tantas,
que a tarefa pode parecer impossível. Trata-se de um território que vive à
mercê de umas quantas pessoas e de umas quantas familias instaladas, monopólio
delas, que se sentam à mesa de um concurso armadilhado, que alimenta uns em
desprimor dos outros, que nao vigia a seguir os resultados performativos que
saem desse concurso, que viola o principio fundamental do teatro, que é o e se
realizar na cena, e nao numa gelada folha de cálculo, refém e à mercê de regras
que não privilegiam o teatro, mas beneficiam o xico-espertismo de um grupo
emergente que vive, e muito bem, nas entrelinhas concursais. Um círculo
autofágico que priveligia o projecto, mais do que o espectáculo. Que não vigia
a concretização do projecto, nem entende necessidade da sua relação íntima com
o espectáculo.
Mas na base de tudo isto, está a própria
desestruturação do tecido teatral português, dos seus fazedores, sem profissão
certa atribuida e consagrada, terreno permeável a todos as intrusões, invasão
sem vigilância, premiada até, com a permissao despreocupada da ocupacao hostil
de lugares por pessoas sem as qualificacoes minimas, que nao têm de ser
necessariamente as academicas, note-se.
E está na vontade política que teima em nao cumprir
uma determinacao antiga que manda que seja consagrado à cultura, a parcela
ridicula de um por cento do orcamento do estado. Este ano, volta-se ao zero
ponto um que coloca a cultura, et pour cause, o teatro, ao nível da indigência.
Regime de excepcao urgente, sim, para os agentes
teatrais nacionais que, com nada ou pouco mais do que nada, têm feito o tudo
que existe. Que não sendo muito e nem sempre bom, é o tanto que vai doendo a
uns quantos que desejam que se faça sempre menos e daquela especifica maneira,
onde o menos, é o mais.
A cornucópia acaba, sacrifica-se, e se não se fizer
essa reflexão, perde-se uma oportunidade única de mudar, de vez, esta excepcional
porcaria em que se perpetua a sua vida.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home