menos uma
Quando eu era mais pequeno, menino
mesmo, tive sempre alguma dificuldade em viajar de comboio e, dessa maneira,
beneficiar do desconto que o estado, e a companhia de caminhos de ferro,
atribuíam às crianças como eu era. Tinha, avisado, de ter sempre à mão o
bilhete de identidade e, antes dele, a caderneta ou certidão de nascimento,
para atestar da minha real idade. Mas logo que se deslindava o mistério - um
tipo tão grande que ainda não tinha os doze anos da praxe, creio que era essa a
regra - logo o desconto fluía para descanso dos meus pais e para meu desespero,
por nunca mais ser merecedor do bilhete por inteiro, ou seja, ser homemzinho de
corpo e bilhete por inteiro.
Com o vinte e cinco de Abril veio um
outro desconto, o que beneficiava a população mais velha, com os mesmíssimos
cinquenta por cento que mantiveram para a população infantil. Para além desses
descontos, havia – como há – descontos para militares e outros grupos
seleccionados.
E assim se tem praticado até agora,
até chegar à praça, Passos Coelho e o seu governo.
O secretário de estado dos
transportes, no que a estes descontos diz respeito, já avisou: os descontos
foram chão que já deu uvas, e ele prevê agora uma mudança radical em tal
prática, preparando-se para limitar esse benefício a uns e a outros. Ao grupo a
que já pertenci, deverá ocorrer um corte parcial; ao grupo a que agora mais me
interessa, e a que espero pertencer daqui a uns aninhos, ou seja, o grupo dos
velhos, o corte deverá ser total. ‘Ide passear para o raio que vos parta’. Não
o disse assim, mas deve tê-lo pensado...
E um a um, pouco a pouco, ou muito a
muito, todas as pequenas regalias de que fomos gozando, vão sendo descartadas
até não sobrar nada à nossa fragilíssima condição humana, fica apenas o cidadão,
vá lá vá lá, ele só, entregue a si próprio, à sua condição miserável se
porventura tiver o azar de não ter em quem se apoiar, longe das grandes
decisões do poder, inválido, frágil, à mercê dos cães vadios.
Nessa altura, os resquícios do
edifício do estado social que ainda se podem encontrar aqui e ali, ruínas já,
mas ainda assim pedras ao alto, já não servirão de amparo a coisa nenhuma nem a
ninguém, será o salve-se quem puder, cada um por si e ninguém por ninguém. Será
tempo, ainda mais do que hoje, para o primado da individualidade.
Mário Soares, o homem que em tempos
engavetou o socialismo, parece – no vazio que hoje experimentamos – o único
capaz de usar a voz mesmo que já débil, para dizer o que ninguém se atreve a
dizer: que é importante desviar-mo-nos do rumo que alguns traçaram para nós,
enquanto corpo colectivo, e que brevemente, com as práticas administrativas que
vamos sofrendo, grassará a violência, mesmo que os sinais aí estejam e nos
digam que ela chegará muito mais cedo do que imaginamos.
Do alto dos seus oitenta e não sei
quantos anos, gritou para Belém e para s. bento: ‘demitam-se. Se não conseguem
falar com o povo no seu conjunto (mesmo que eu não saiba o que isso seja),
abram alas para outros que façam dessa politica, uma prática indispensável’.
Cavaco parece que estava de orelha à
escuta, encostada à porta da aula magna. No último dia, no último momento, já
depois de ecoarem no país os brados soaristas, enviou para o tribunal
constitucional alguns dos diplomas que o governo se preparava para votar e
aprovar, sem que ninguém ousasse a coragem necessária para gritar e, tão
importante quanto o grito, fazer-se ouvir, contra os enunciados apresentados,
vencendo a letargia reinante.
Valham-nos agora os juízes de tribunal
constitucional que, por estes tempos, são os novos heróis lusitanos. Não há,
como nas palavras de Ricardo Araújo Pereira e que eu corroboro, função mais
sexy que ser-se juíz do tribunal constitucional.
Se não forem eles, o poço ficará mais
poço, o fundo cada vez mais fundo. O orçamento foi aprovado ontem ao mesmo
tempo que, nas ruas, era reprovado.
Aguardemos pois.
A esperança não é muita, mas enquanto
o pau vai e vem, como diz o povo, folgam as costas.
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