estátuas...
Se Câmara Municipal
decidiu, óptimo, está decidido.
O Cónego Melo
terá, na rotunda do cemitério de monte de arcos - por decisão superior, autárquica,
do governo da cidade - uma rotunda estátua, já há que tempos fundida. Coisa bem
fundida, aliás, para os ideais da liberdade e da livre escolha. Refundida para
ser mais concreto, e como gostam de dizer os brácaros... Pelo menos alguns...
Os de cepa, mal criados... Os meus amigos.
A deliberação
histórica foi obtida com os votos favoráveis dos socialistas, pese embora a
abstenção do CDS e dos sociais-democratas, que são quem tem assento no governo
da cidade. Fora destas contas, mas com posição pública bem definida, ou seja
CONTRA, não votaram mas gostariam de ter votado, comunistas, bloquistas e
demais esquerdalhice.
Ou seja, a estátua
vai ser colocada ali, naquele lugar público, com o apoio singular do PS. O que
quer dizer alguma coisa. Ou muita. Uma matéria polémica, pelos vistos, onde até
o PSD e o CDS se abstiveram...
Uma parte da
cidade arregaça as mangas e apressa-se em manifestos e abaixo-assinados; a
outra cala-se, mete e fralda da camisa para dentro das calças, e segue caminho
sabe-se lá para onde.
Eu, chegado
aqui, faço o exercício da memória. Tento lembrar-me da figura do Cónego Melo,
para lá da fama que todos lhe conhecem e, porventura até, do proveito que
amigos meus - absolutamente confiáveis - asseguram que teve.
Conheci o Cónego
numa visita guiada à Sé de Braga, a propósito da realização de um espectáculo
de teatro pela Companhia de Teatro de Braga que eu acabaria, curiosamente, por
não fazer. Contas de outro rosário. Como se estivesse em casa - e estava... - o
Deão da Sé foi-nos indicando o caminho e orientando os passos, mostrando o que
achava ser mais mostrável: o crescimento da Sé ao longo dos séculos; as marcas
da importância deste e daquele arcebispo conforme as obras de melhoramento
introduzidas; as que ele próprio tinha protagonizado e as marcas que deixava na
arquitectura do espaço; quem estava sepultado e onde; que importância tinham
tido os defuntos na historia do país, da cidade e da diocese; E chegados a um
determinado sítio, estacou, fez suspense e, finalmente, batendo numa larga
pedra da parede já não sei de que sala, acrescentou aos sonorosos afagos
percutidos na pedra pela palma da mão íntima e clerical, um 'e para aqui, venho
eu', concluíndo, enquanto nos olhava, desafiante. A ideia chocou-me, confesso.
Um vivo a indicar a outros vivos, o seu lugar depois de morto. O lugar que,
aparentemente, ele mesmo escolhera em lugar mais ou menos público. O seu lugar escolhido,
não apenas na geografia daquela casa, mas na história, com letra maiúscula ou
minúscula, não interessa agora discutir isso. Num assomo de vaidade indisfarçável,
o homem investido agora no papel de actor no meio de actores, desafiava-os para
aquele momento de conflito. Era, por momentos, o protagonista provocador, o que
se insinua na intimidade dos outros, revelando o que de mais íntimo existirá
neles, sem púdicidade: o misterioso momento depois do abandono da vida.
Errou. Pelo
menos para já. Não está por detrás daquela pedra que afagava com lascívia com a
palma da mão, deixando evidente nas costas dela, reverso de carinho, a dureza e
ostentação do anel com pedra brilhante.
Ele não está
lá. Ainda. Mas a sua imagem vai ficar, em latão, na rotunda de monte d’ arcos,
cara a cara com os outros defuntos, admirados porventura com a vizinhança
desequilibrada: todos deitados e ele ali, de pé, em cima de um caixote de betão,
vestido de ferro.
Um amigo, um
dia destes, reflectia comigo acerca dos gestos emblemáticos que marcavam a
presidência do engenheiro Mesquita Machado, ambos relacionados com estátuas,
curiosa coincidência, e com a redenção de figuras polémicas, capital do quase
divino, senão mesmo do sobrenatural: começa a sua presidência redimindo Santos
da Cunha e a estátua que o imortaliza em Maximinos; e acaba com Melo Peixoto, e
a estátua que um grupo de saudosistas mandou fazer e pagou, em Monte d'Arcos.
Majestoso
arranque; glorioso final.
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