quinta-feira, outubro 29, 2009

solidão

O abandono e a solidão profundos, proporcionam histórias desadequadas aos tempos que correm, histórias que aparentemente parecem impossíveis de concretizar-se, num tempo em que tudo concorre para que se faça precisamente ao contrário do que vai acontecendo. Quando tudo possibilita um encontro permanente de uns com os outros; quando os nossos passos são espiados por câmaras ocultas montadas nas esquinas mais esconsas para sossego do comercio local; quando o telemóvel permite que se saiba, momento a momento por onde andamos; e assim por diante.
E no entanto, histórias como a que venho aqui contar-vos hoje, acontecem cada vez em maior número a tantos homens e tantas mulheres no mundo inteiro. Sabê-mo-lo de outras tantas histórias que vamos lendo, ou que nos contam, ou que conhecemos por nos terem acontecido ou acontecido a pessoas que conhecemos, quase vizinhos, quase parentes, quase nós mesmos.
Esta, a história de hoje, chega-nos de Paris. Antigamente uma terra tão longe e hoje aqui mesmo ao lado, à distância de uma hora e meia e cinquenta ou sessenta euros de viagem voadora, feita para lá e para cá.
Li-a há umas semanas, num jornal, notícia pequena, corpo mínimo para tanta solidão.
Aparentemente, nas primeiras linhas, nada de anormal, num tempo – se calhar desde sempre – em que a morte deixou de ser notícia. Ou é-o desde que acontecida em circunstâncias especiais.
Um cidadão português, por acaso ou sabe-se lá porquê, foi descoberto morto, no seu apartamento parisiense, depois de dois anos de ausência social. E agora é que a notícia verdadeiramente começa: o desaparecimento de que a notícia fala, deve-se à circunstância de ter estado – voilà – morto, durante o hiato de dois anos. Morreu sentado, porventura a ver televisão, surpreendido por uma morte aparentemente inesperada. Vivia sozinho e ninguém se interessou pelo seu desaparecimento. Se família tinha, não foi procurado. Se amigos tinha, não o procuraram. O seu ocaso, misterioso ou nem por isso, não interessou a ninguém. A ninguém. Ou porque a renda da casa continuou a ser paga por débito bancário directo, e porque a conta continuasse a ter dinheiro para sustentar essa despesa. Nem quando a companhia de gás cortou o abastecimento desse produto essencial; idem a companhia da electricidade; idem aspas a companhia da água, telefone e demais serviços. Nada. Ninguém o procurou.
O português, descoberto por força do mau cheiro de que há tanto tempo os moradores do prédio se queixavam, foi encontrado mumificado, dois anos depois da sua morte, porventura sentado no sofá, os olhos postos na televisão desligada. À falta de quem presencialmente o fizesse, foi identificado pelo auricular que ainda tinha no ouvido decomposto, por possuir um número de série, que batia certo com o cliente que o adquirira.
Se isto não é solidão, não sei o que o seja.
A múmia descoberta era portuguesa. Como algumas solidões também o são.

sexta-feira, outubro 23, 2009

os pê pês que há neles

De «Calote político», acusou o ministro da agricultura, Jaime Silva, o seu principal opositor, a sua outra imagem do lado inverso do espelho, o autentico ministro sombra da lavoura, Paulo Portas. «Calote político». Eu não sei o que seja, mas deve querer dizer alguma coisa, e qualquer coisa embaraçante, sim, das duras, das difíceis de digerir. Tanto que Portas não gostou do epíteto. «Calote político»? E, como é inteligente, percebeu. Calote, penso eu, é, por exemplo, não pagar o que se deve. Portas, não terá pago, deduzo então, na palavra ainda ministerial, o preço político de alguma coisa. E no caso, alguma coisa relacionada com a agricultura ou as pescas, porque era isso que estava em equação. Vai daí, afinou. Pudera. E com requintes, preparou-lhe, em lume brando, uma acção em Tribunal. Como nestas coisas jurídicas ou judiciais, é necessário um advogado, Portas recorreu ao melhor. Isto a crer nas suas palavras. Para o representar na querela, Paulo Portas escolheu o advogado (tan-tan-tan-tan) Garcia Pereira. Ficaram pasmados? Não fiquem, porque uma coisa é ser-se político, outra bem diferente, é ser-se cidadão, com direitos e deveres. Nada de anormal, portanto. Garcia Pereira é advogado, e dos bons, consta… Ora, foi a sua opinião jurídica que foi consultada, não a sua opinião política. Essa é que parece, na palavra dos dois, coisa inconciliável.
Adiante.
Mesmo não sendo para aqui chamada, a coisa política – politicamente - fia mais fino, porque se sabe, e é isso que é o mais interessante nesta história, é que Paulo Portas é o líder do CDS-PP, e Garcia Pereira é o porta-voz e principal dirigente do directório do MRPP. Um é de direita, Paulo Portas; o outro é de esquerda, Garcia Pereira. Mais: um é de extrema-direita (não sei se se pode dizer assim, mas creio que hoje, consabidamente e assumido pelos próprios, o CDS já não é do centro – se é que o foi em algum momento – mas sim de extrema direita), e o outro, de extrema-esquerda, ainda que alguns teimem em chamar-lhe sociais-fascistas. O que é que os unia? O que é quem em tempos os uniu politicamente? O mesmo que os continua a unir: o PP da sigla. A seguir ao nome de um, CDS; e a seguir à metade inicial do nome do outro, MR. Cê dê esse, PÊ PÊ, lá está, e éme erre PÊ PÊ. Num e noutro, PP, que é a volta que o mundo dá, o mundo político, em direcção à mesmíssima coisa.
Convenhamos: o que a política separa, une o interesse profissional. Mantém-se a relação típica: o patrão continua a ser do CDS, e o trabalhador do MRPP. Há coisas que nunca mudam. Arnaldo Matos, o grande educador da classe operária, é que tinha razão. Garcia Pereira é que parece não ter lido a mesmo cartilha.
É curioso. Mas só isso.
«Calote político», disse o ministro. No meio de tanta asneira e incapacidade, Jaime Silva algum dia tinha de ter razão.

domingo, outubro 18, 2009

dúvidas néticas

Interrompo as minhas breves crónicas, às vezes não tão breves quanto isso, mas enfim, para, desta feita, partilhar com os senhores leitores, as minhas mais íntimas preocupações acerca do meu computador portátil, já mais que uma ferramenta, um amigo, um irmão, que pode estar sob vigilância, vá á saber-se de que malandros, e quantos.
Desconfio disto por causa das palavras do senhor presidente da república. E por estar cada vez mais lento. Junto uma coisa à outra e, eis a desconfiança.
Eu abro-o, e enquanto ele chega a um sítio específico onde tenho as pastas que me dão sustento e onde me apoio, parece que lhe dá a camuéca e lá fica, em êxtase, uma eternidade. E essa eternidade, eu creio intimamente – e agora proclamo-o em público… lá se vai a intimidade, portanto – é o momento em que se instalam sistemas que lêem as minhas palavras, a minha mente, que intuem o meu pensamento antecipado, o meu voto e sei lá que mais.
Cavaco Silva apareceu naquela que é a sua roupagem mais íntima, em frente às câmaras de televisão, a denunciar aquela desconfiança que o caracteriza, desta feira relativamente à possibilidade de ter o seu computador e os computadores da presidência da república, sob o veredicto de estranhos, não tão estranhos quanto isso, claro.
Diz que não fala de segurança, mas diz que pediu a uns quantos peritos que lhe fossem dar uma visa de olhos aos computadores do Palácio de Belém, e tornassem mais claras, a s possibilidades de haver intrusos nas comunicações.
Não fala em segurança, mas mandou – diz a imprensa e eu sei que nem sempre e deve confiar nesses energúmenos – que vasculhassem telefones e demais sítios onde pudessem estar alojados, ouvidos indiscretos.
Prefere falar de intromissões que vão para lá do aceitável e do tolerável, de jornalistas e de políticos que ouvem os jornalistas, e aponta para o partido socialista, de tentar colar o presidente da república a um partido político e mais, a obrigá-lo a sair do seu sítio quentinho e equidistante.
Pois, mas não é verdade que estava entre a sua criadagem (a expressão é quase sua) alguns dos que escreveram o programa político do partido social democrata? E no que diz respeito à agricultura, ou à lavoura, não foi um seu ajudante, em que o CDS se apoiou para escrever e dizer o que disse, relativamente às políticas do governo sócretista?
Não teria sido mais certo questionar se, em nome da cidadania, qualquer português pudesse participar nas reflexões que se exigem, mesmo que a escrever programas partidários, que suportariam as estratégias e doutrinas, dos diversos agrupamentos presentes no boletim de voto dos portugas?
O que é menos tolerável, é ver publicado – e antes da publicação, ver distribuído e descobrir esses caminhos tortuosos praticados – um mail onde um seu distinto ajudante, ajudante com ais de 20 anos de ajudas e ombro cúmplice, a envolver-se com um director de jornal e de jornalistas, vendendo-lhes uma história de espionagem, e estabelecendo parcerias para a sua publicação selectiva. Isso é que parece suspeito. E isso é que fragiliza a política e os políticos.
Então, afinal de contas, quem é que manipula a informação? Que órgãos de comunicação social estão ao serviço de que forças partidárias. Tudo se torna mais claro com estas denúncias, com estas zangas de comadres.
Tal como há uns dias dizia neste mesmo espaço, os órgãos de comunicação social são empresas que objectivam o lucro, logo, têm patrões, e os patrões fazem tudo e mais alguma coisa para ganhar mais euros. Até mesmo vender a alma ao diabo, salvo seja.
Sejam felizes.

domingo, outubro 11, 2009

votando

Saí do sítio onde por estes dias apresento espectáculos, às nove da manhã.
Na plateia de ontem (na plateia «instalada» pelo pintor João Vieira...), estavam psiquiatras. Montes deles. Estivemos à conversa, um pouco, terminada a função. Eles a querer saber da «esquizofrenia» de se estar no lugar de tantas pessoas, e eu a querer saber se ainda eram prescritos «electrochoques». Sinto que, no copinho que bebi com uma data deles (e delas… ! Eram tantas. Mais que eles.) fui analisado em pormenor. Quase dissecado.
Passei na Figueira da Foz.
Já agora, voto, pensei.
Encontrei amigos nas mesas de voto, em serviço. Olá, pá. Há que tempo. Se não estivesse aqui preso íamos beber um café. Eu também não posso. Tenho de seguir. Número tantos e tal. E o meu amigo: António blá blá blá, e por aí fora, o meu nome todo, que é coisa comprida. E acrescentou: também conhecido por... e lá sai o petit nom, um grito de da quase infância. Que saudades.
Posso dizer – mesmo que ainda não sejam horas para confidências destas (até acho que é ilegal) – que votei no meu amigo candidato-enfermeiro, velho enfermeiro, e nas diferentes listas que o partido que o propõe, apresenta. Afinal de contas, não é impunemente que posso dizer que tenho um amigo enfermeiro de quem nunca apanhei nenhuma injecção. As conversas eram sempre – e digo «eram» porque os anos nos separaram e as nossas conversas são, agora, coisas ocasionais, de verão – coisa agradável.
Cheguei a Braga e verifico que está instalada uma expectativa fora do comum. Que quer indiciar o quê?
Daqui a bocado saberemos.
Talvez nada.
Eu acho que nada, de qualquer maneira.

quarta-feira, outubro 07, 2009

do armamento:

A indústria dos tirinhos está pela hora da morte. Não aquela, da Feira Popular ou quejandas, mas a verdadeira, a dos tiros a sério, a dos que têm o homem na mira, como alvo a abater.
Talvez seja mais correcto dizer que a indústria dos tiros sempre esteve pela hora da morte. Pois se é disso que ela vive. Da morte. Esse é o seu primeiro propósito. Se não esse, exactamente esse, (porventura, os mais líricos, sonham com revoluções sem tiros, com cravos em lugar de balas), pelo menos a sua consequência mais óbvia.
Florescente, é o mínimo que se podia dizer dessa indústria. Ao longo dos tempos, substituíram-se as armas mais antigas por outras mais sofisticadas, cada uma, um passo à frente da outra, no que toca à capacidade de matar: o pau primeiro e, depois dele, as mocas; as pedras e, depois delas, as pedras afiadas; as lanças e a seguir as espadas; os arcos e flechas e, depois deles, as bestas; as pistolas e, depois delas, os canhões; as espingardas, e a seguir, as metralhadoras; os mísseis, e depois deles as bombas complexas; etc. À boleia dessa indústria, ofereceram-se empregos a dezenas de milhar de pessoas. E apesar de ser a morte o desiderato dessa indústria, também estava, nesse gesto industrial, um esboço de vida, um desenho de futuro. É a permanente história das coisas que, raramente são unicamente o que são, porque uma coisa é sempre algo mais para além de si mesma, muitas vezes eco de si própria, voz e gesto devolvidos pelas montanhas e, muitas vezes, o contrário do que parecem e são. Tantas vezes elas são o inverso da razão porque foram criadas, mesmo que não neguem a sua essência. Como no caso das armas.
Adiante.
O que é facto é que, onde aparentemente não se vislumbrava a possibilidade de um negócio dar para o torto (como no caso do fabrico de armamento), pode acontecer – pelo menos em tempos de crise – a maior aberração.
Como esta, de agora se saber que a mítica metralhadora kalashnikov, estar à beira da falência.
E que razão haverá para estar a célebre AK-47 a passar as passas do Algarve?
Duas razões, pelo menos:
A primeira delas, por estar em risco a mítica Izhmash (a empresa que fabrica as metralhadoras), é por não conseguir – ou não querer – pagar as dívidas a fornecedores, mormente a um deles, que reclama o pagamento de 13 milhões de dólares.
A segunda delas, é porque se calcula que, por cada metralhadora original, se façam, actualmente, pelo menos dez cópias, em países como a China, a Polónia e a Bulgária.
Assim, a metralhadora que fez história na Rússia e em tantas revoluções espalhadas por todo o mundo, pode ir desta para melhor.
Em tempos de guerra não se limpam armas; em tempos de crise, já nem a indústria do armamento está a salvo.