quinta-feira, maio 24, 2012

ainda o hiper


Um dia destes, ia eu muito descansadinho ao hipermercado, que é uma coisa que faço amiúde porque me esqueço sempre de alguma coisa e as mercearias de bairro são chão que já deu uvas, e deparo-me com mais uma campanha, das muitas, que por lá vão acontecendo. Filantropias…
Desta vez, era uma a favor do Banco Alimentar contra a fome.
Bem, a instituição merece-me todo o respeito e crédito, mas o hipermercado não. Há ali, logo à partida, um conflito de intenções que me preocupa. O hipermercado, sei-o, não dá nada a ninguém. Era, pois, de desconfiar.
Normalmente, nestas situações, compro uma palete de qualquer coisa, leite por exemplo, que remédio, sempre saio com a consciência apaziguada, mas desta vez, o que me era pedido, era que comprasse cupões e não em bens alimentares.
Olha, pensei com os meus botões, é uma ideia interessante. E por três razões: primeiro porque o Banco terá os alimentos disponíveis sempre que necessite deles; segundo porque não se corre o risco de os alimentos ficarem fora de prazo; terceiro, porque não preciso de carregar os bens nem o Banco de tratar de organizar os alimentos numa rede de separação difícil e pesada, mesmo que realizada com voluntários.
Mas o conflito de interesses estava em lançado na minha cabeça. Por isso quis saber, ainda assim, de que maneira é que o hipermercado, no caso o mesmo da palhaçada do primero de maio,  participava nessa campanha. O que dava. Quanto dava. Quando dava. Por isso, pedi informações.
Depois de esperar tempos infindos que alguém das relações públicas me explicasse o que eu pretendia que me fosse explicado, verifiquei – estranhamente, sem espanto nenhum - que o hipermercado não contribuia com rigorosamente nada. Nicles. Nem um quilo de acúcar, nem um litro de leite, nem uma lata de salsichas. Deixavam utilizar o equipamento. Para a  cadeia de distribuição, aquilo é só mais um negócio. Apenas negócio. Negócio que lucra com a miséria. Ou seja, negócio miserável. Nós compramos lá os bens ao mesmíssimo preço, mesmo que em cupões - venha a nós o vosso euro – e o hiper fecha-se em copas. Ainda por cima, lucra descaradamente com as nossas dádivas, porque faz da nossa generosidade, coisa sua. Quando entrega o que nós damos, diz que é dádiva sua. Eticamente deplorável. E por fim, a cereja no topo do bolo da destemperança, declara estas entregas, dizem-me, na declaração de impostos, beneficiando financeiramente deste falso gesto altruista.
E nesse momento pensei nos abutres que, como nos filmes de cow-boys da minha juventude, eram sempre os primeiros a chegar quando lhes cheirava a cadáver, que é o cheio que está instalado na sociedade portuguesa.

quinta-feira, maio 10, 2012

pingo agridoce


Num momento em que, civilizadamente, os homens caminhavam para a sua felicidade, ainda que uma felicidade materialista, feita de coisas descartáveis – umas – mas efectivas – outras, – onde questões essenciais eram mais ou menos garantidas, território frequentado naturalmente pelos trabalhadores (que, regra geral, são os seres que estão na cauda da cadeia dos direitos e os ultimos a conseguir essa felicidade pretendida), eis que essas conquistas laborais, que levaram séculos a conseguir, desabam como um castelo de cartas.
Como se não bastasse este retrocesso, eis a cereja no cimo do bolo da desconsideração: a cadeia Pingo Doce (é engraçada a utilizaão da palavra ‘cadeia’ neste contexto, não é?) escolhe para dia da sua campanha especial de corrida, o primeiro de maio, data emblemática, precisamente, dos avanços civilizacionais de que falava antes.
E essa escolha, digo-vos, foi tudo menos inocente.
Primeiro: A notícia de que um qualquer supermercado, em guerra com outros supermercados ou não, decide baixar os preços, é uma optima notícia. Quer dizer, é optima, mas tb nem por isso. Optima, porque permite aos menos favorecidos, comprar com menos esforço económico; nem por isso, porque é sinal claro de que as margens de lucro praticadas estão acima do razoável – para o consumidor – em prejuízo, provavelmente do produtor que é quem tem a fatia maior do trabalho. Aliás, ainda não percebi qual é realmente a função do distribuidor, (para além dessa, da óbvia, que qualquer pessoa faria, diga-se), para ganharem à cabeça mais que o fulano que produz o bem, quando o seu único trabalho é levar o produto de um sítio para o outro…
Portanto, sempre que um produto baixar de preço, eu aplaudirei.
Mas não à custa dos produtores, como parece ser o caso desta cadeia e desta recente campanha.
Mas não em dias especiais, como o primeiro de maio. Não nos admiremos se, se não se tiver mão nisto, um dia destes, em dia de eleições, inventarem nova iniciativa, daquelas que boicotam literalmente a ida às urnas. Se bem que à classe política pouco importe que a votação baixe ainda mais, uma vez que têm garantidos o mesmo número de lugares na gamela do poder, quer a abstenção seja elevada ou não…
Há uma outra nota sobre a qual importa reflectir: as cenas verificadas nas diferentes lojas e nas mais díspares cidades, vem colocar o dedo em duas possíveis realidades sangrantes: a primeira é a de que, qualquer campanha que se faça e onde cheire a coisa mais barata, lá teremos o povão a encher o carrinho, precise ou não das coisas que estão disponíveis nas prateleiras. Vale sempre a pena, dizem, e lá abalam com as bagageiras do carro repletas de coisas que usarão daqui a não sei quantos meses, isto se os ratos entretanto não derem cabo delas e não lhes chamarem um figo;
A outra, a de que a austeridade imposta aos portugueses, descamba nesta sede selvagem de tudo, nesta sofreguidão que só interessa aos donos dos bens, que com estas miseráveis aparas de queijo, chamam a si os tristes portugas, os fazem vir comer à sua mão, sem que o rato se aperceba de que, submissos e alienados, são presa fácil para quem os domina a seu bel-prazer.
No supermercado, como na mesa de voto.
Eu aposto que já devo ter votado ‘democraticamente, e não sei quantas vezes, no Pingo Doce. Há-de haver um ou muitos mais deputados, que estão na assembleia em representação dos interesses dessa gente.
Acham que estou a exagerar?