quinta-feira, março 26, 2009

Dia Mundial do Teatro – 5

Num país, com um governo que se comprometeu a dotar o orçamento para a cultura com 1% do orçamento geral de estado, mas que procedeu exactamente ao contrário, (este ministro da cultura, com todo o respeito pela figura, disse, aquando da tomada de posse ou nos dias que se seguiram, que era possível «fazer-se mais [cultura] com menos dinheiro», [porreiro pá!]), este pequeno sinal diz tudo: é a mais eloquente mensagem que podemos tomar como coisa eminentemente programática. E recear.
Leiam, se puderem, a reflexão que Manuel Maria Carrilho fez (nos últimos vinte anos o único ministro da cultura que realmente tivemos) para o interior do PS. Lá, diz-se muito do tudo que se tem vindo a calar.

Dia Mundial do Teatro – 4

O Teatro e o Actor (enquanto coisas maiúsculas), é, por isso, uma profissão onde hoje – como sempre – se aprende e se é resistente, à força. Resistente ao mercado que, qual rolo compressor, tudo esmaga à sua passagem – e se não se está de acordo com ele, ele cospe-o fora como coisa imprestável; resistente à facilidade, porque como coisa artesanal que deve ser, nos obriga à superação em todos os dias.
Ser-se actor deve ser, hoje, ainda e sempre, um espaço para contrariar a lógica de mercado que se vem a instalar, claramente identificada ao típico sistema «capitalista» (escrevo as aspas porque não sei bem o que seja essa coisa musculada, esse palavrão económico… Mas sei, sim senhor, que há um teatro que objectiva o lucro. E respeito esse ponto de vista. Mas ponho-me fora dessa lógica. E aconselho todos os que comigo trabalham e que fazem a caridade de me ouvir, a fazerem o mesmo.); Ser-se actor, hoje, é estar-se na corda bamba. Navegação à vista. Integrante de uma profissão sem critérios, ou com os critérios adulterados.
É preciso, portanto, ser-se contra a corrente. Missionário em tempos de devassidão.

Dia Mundial do Teatro – 3

Ser-se actor, hoje, é, portanto, sabermo-nos integrantes de uma classe que não tem regras aplicadas que nos defendam: nem a nós nem ao nosso trabalho; ser-se actor é ter-se uma profissão pouco digna, que qualquer pessoa pode realizar, sem que tenha grandes, ou pequenos, atributos para tal. Na verdade, qualquer um pode ser actor, mas só os que têm formação na área da medicina e aprovados pela respectiva ordem, é que podem ser médicos. O mesmo para os arquitectos; o mesmo para os engenheiros; o mesmo para os professores; o mesmo para os jornalistas; e por aí adiante. No teatro, não. Quem vier à rede é peixe. É preciso é ter-se «jeito». Ora, uma profissão cujo requisito principal é o jeito, está – obviamente – destinada a ser tomada por jeitosos.

Dia Mundial do Teatro – 2

Ligaram-me de um jornal, no caso do JN, para que depusesse sobre a condição de actor, a propósito do dia Mundial do Teatro, que amanhã se comemora. Depois de pensar um pouco, lá me atrevi a dizer meia dúzia de coisas básicas, infelizmente coisa muito pouco festiva.
Depois de algumas horas de intervalo, entendi verter essa reflexão para aqui, local de partilha dos meus meia dúzia de pensamentos com um mínimo de articulação.
Acho – e é sempre bonito começar qualquer pensamento com esta expressão, porque ela enuncia um pensamento, o nosso, e por trás dele, o que o pensa, ou seja, o pensador ele próprio, isto é, eu – que as coisas estão demasiado negras. Mas isto, mal dito assim, não é mais que chover no molhado, verter amargas lágrimas no azedo choradinho nacional. Concretizemos, pois: não sei, com rigor, o que é ser-se actor, hoje em dia, em Portugal. Há uns tempos atrás, eu sabia, juro pela minha saúde. Quer dizer, conhecia as regras, os caminhos para se chegar lá. Quando pensei em ser actor, conversei com algumas pessoas ligadas ao meio e quase todos me disseram o mesmo. Quero com isto dizer que se conheciam as regras, estavam abertas as estradas, sinalizados os caminhos. Não que tudo fosse perfeito, longe disso, mas estava tudo mais ou menos clarificado. Fazia-se a formação profissional em locais credenciados, (ou vinha-se de sítios onde a prática teatral era uma realidade mais ou menos cumprida, como o teatro de amadores, por exemplo), depois fazia-se o estágio numa estrutura de produção (dito de outra maneira, num Companhia profissional) e, terminado esse período (já não lembro se um ano, se dois), obtinha-se a ambicionada carteira profissional. Porque nem sempre as coisas correram bem na relação entre os sindicatos e o ministério do trabalho, às vezes era o sindicato a aprovar a entrada na classe, e pronto, valia o cartão do sindicato. Com a carteira profissional, ou com o cartão do sindicato, obtinha-se trabalho. Ou não, que o desemprego sempre foi uma constante na classe. Hoje, francamente, não sei como é. É-se actor depois de não se saber muito bem o quê. É-se actor, muitas vezes, contra os jovens que fazem a sua formação nas escolas credenciadas (três anos ou cinco, no ensino superior, via Bolonha), se bem que outras proliferem, concretamente no ensino dito particular, igualmente acreditadas, mas que desconfio que servem para tudo menos para fazer formação. Existem porque razões de mercado as impuseram, diz-se. Pronto! Funcionam como porta de acesso a umas quantas experiências, normalmente televisivas, et voilà. Valoriza-se determinada imagem, a que se reconhece em gente que tem «passado» nas passareles (com todo o respeito que tenho pelas pessoas que fazem vida disso…) ou uma imagem iluminada por essas tendências, que se saiba insinuar de um modo formatado e de acordo com os padrões em voga neste ou naquele momento. Depois de uns minutos de fama nas televisões e nas novelas terceiro-mundistas que por cá se fazem – e por lá, situe-se este lá onde quer que seja – e está-se pronto a subir ao palco e a ser-se chamariz das massas, mesmo que não se saiba dizer duas palavras seguidas. O grau de exigência eclipsou-se, tudo serve, o que vem à rede è peixe. Ok!

Dia Mundial do Teatro – 1

O dia mundial do teatro é festejo indispensável, foguete que importa ver estoirar, coisa demasiado importante para desbaratar. Lembra-nos, entre outras coisas, os restantes trezentos e sessenta e cinco (ou quatro) dias, em que não se liga patavina ao teatro. Pelo menos para isso, serve. Aleluia.

na sacristia

Um padre, confesso simpatizante do Sporting, e pároco na igreja do Rato, no final da missa de domingo, terá dito, em jeito de aviso, que a partir daquele dia, não baptizaria nenhuma criança que quisesse ostentar no bilhete de identidade, o nome Lucílio. Claro que se estava a referir à arbitragem do jogo Sporting-Benfica, ou vice-versa, ganho pelo Benfica depois de um lance mal ajuizado pelo tal Lucílio.
Esta graça correu mundo e ocupou a atenção de jornais e jornalistas, equipas de reportagem de TV’s que fizeram – pasme-se – esperas ao padre à entrada de um cemitério onde iria presidir a um funeral, e sei lá que mais barbaridades.
O que quer dizer muito, e nada, no que à prática informativa portuguesa diz respeito.
Tanta notícia para acompanhar, e tanta gente ocupada com minudências, que interessam o que não interessa; tanta energia desperdiçada no afã de dirigir a nossa atenção para coisas desimportantes; para nos desfocar do que é realmente essencial.
Interessa a quem, este desvario e este desfoque?

segunda-feira, março 23, 2009

a publicidade, as manifestações e a antena um

Há uma campanha publicitária a correr pelo menos na RTP, promovida pela Antena 1, e que é, no mínimo, polémica.
Os sindicatos queixaram-se de perseguição e até já apresentaram protestos nos sítios do costume.
Mas vejamos:
Numa primeira abordagem, o spot até nem me pareceu mal. Joga com a ideia popularizada de que uma manifestação prejudica as pessoas que não se manifestam. O que até é verdade. Normalmente, uma manifestação, ou uma greve, colide com o interesse das pessoas que não se querem ver envolvidas nas manifestações. Esse é o objectivo das manifestações, ou das greves. Ou não é? Há um grupo de pessoas que faz greve, que não trabalha, e que obstaculiza os que querem trabalhar. Até, veja-se o exemplo, constituindo os chamados «piquetes de greve», que estão à entrada dos sítios onde se faz greve de modo a impedir a entrada dos que querem trabalhar; uma manifestação pública, com cortes de estradas e etc., objectivamente, o que pretende é alterar a vida quotidiana, para lá – coisa de não menor importância – gritar o que entendem ser as suas obsessões. Isto é normal. Quando maior a manifestação, maior é o caos público. Se a manifestação ou a greve nada conseguir neste domínio, é porque alguma coisa está a falhar. Eu já cheguei atrasado a coisas onde tinha de estar, por desinformação ou ignorância, não me ter organizado devidamente, de modo a que não fizesse preso no trânsito, por exemplo.
Isso é uma coisa.
Outra, absolutamente diferente, é fazer disso campanha publicitária, no caso para vender uma estação de rádio, para mais estatal. Isso já me parece ser coisa pertencente a outro território. A manifestação, como a greve, desde que cumpridos alguns princípios definidos por lei própria – convocatória em tempo útil, por exemplo) é um direito que assiste a qualquer trabalhador, em conformidade com o seu sindicato ou grupo de trabalhadores organizada de uma outra maneira qualquer. Jogar com isso, mesmo que para efeitos promocionais a uma estação emissora, é outra coisa absolutamente diferente.
E, mais ainda, nos tempos que correm, faz todo o sentido ficar desconfiado da boa fé de uma campanha organizada por uma instituição que depende do estado. Muito menos, a Antena 1, na RTP. É que, antes de tudo o mais, é necessário pensar nas consequências profundas que qualquer campanha pode provocar. Mesmo que haja ali apenas uma falha grave na avaliação dos spots em todos os seus sentidos.
Lá está o velho ditado: à mulher de César não basta ser séria. Também é preciso que o pareça.

terceira idade: já cá estou

Pronto. Acabei de entrar na terceira idade, e bastou fazer 48 anos.
Eu sei que são muitos anos. Eu sei. É já muita idade. Mas escusavam de ma atirar, tão ostensivamente, à cara.
Um destes dias, antes de cumprir o doloroso quadragésimo oitavo aniversário, li, num blog, alguém que se referia a mim, classificando-me, em cena, no meu trabalho portanto, como sendo senhor de uma malandrice que só a vetusta idade proporciona. E os termos eram exactamente estes. Dias mais tarde, numa espécie de errata, a blogger em questão dizia que por acaso cruzara-se com a minha idade num sítio qualquer e verificara que, afinal, era mais velha do que eu, e que os meus cabelos brancos a enganaram. Se sofri com o primeiro post, ainda mais sofri no segundo. É que sendo mais novo do que a minha imagem deixa perceber, continuo a parecer muito mais velho. Bolas.
Esta semana, a prova derradeira. Numa ida ao cinema, fui presenteado, sem que tivesse aberto a boca, com um bilhete com desconto. Antes que perguntasse o que quer que seja, a senhora do guichet disse-me que se tinha enganado, e dera ordem de impressão de um bilhete com desconto. Se eu não me importava de entrar com ele, beneficiando assim, do desconto. Aceitei, mas foi um desconto sofrido, porra. Estava lá escarrapachado: terceira idade.
Valeu o filme. O ARGENTINO já chegou às salas de cinema nacionais e é imperdível. Não percebo nada de cinema, movo-me com combustíveis que não são, porventura, os de um normal apreciador da coisa. Este filme mexeu comigo. Não é bajulatório, não procura mitificar. É assim, apenas. E atenção, a interpretação de Benicio del Toro é magnífica. O tipo é mesmo bom.
Mas na minha cabeça, apesar de ter adorado o filme, continua presente a porra do desconto. Caramba. Sejam misericordiosos.

terça-feira, março 10, 2009

a (outra) disputa

Quando a capacidade argumentativa falha, ou quando a entendemos muito para além do nível do destinatário, linguagem ininteligível para esse outro e, logo, improfícua, vinga o jargão, a asneira, o palavrão, que quanto mais grosso, como se sabe, melhor, que o mesmo não quer dizer, mais eficaz. Ou seja, uma coisa não leva inevitavelmente à outra.
O deputado social-democrata José Eduardo Martins, por razões que só ele conhecerá, entendeu que a argumentação convencional que lhe cumpria no âmbito do debate parlamentar (ou para lamentar), não servia os seus intentos nem os da sua bancada, ficava mesmo aquém do bom funcionamento da coisa, não servia o combate com o seu antagonista, o deputado socialista Afonso Candal e, vai daí, foi ao paiol laranja e muniu-se de artilharia mais pesada, que o mesmo é dizer, abriu a boca e pôs os pontos nos is, «seu isto e seu aquilo, vai bardáqui, vai bardali, seu grandessíssimo filho disto e depois daquilo», e por aí fora, até onde a imaginação (minha e vossa) nos levar e sem que eu fira os vossos ouvidos com as querelas parlamentares passadas a limpo e sem censura neste blog.
Não foi a primeira vez que o parlamento luso assistiu ao vernáculo puro e duro da discussão política, fulanizada neste ou naquele protagonista, nos ódios recalcados - ou não - entre este ou aquele oponente, mais vivos aqui ou mais atenuados ali, num esquema de interesses que vão muito para lá da política e se confundem, amiúde, com interesses pessoais, particulares, mesquinhos porque para além da coisa pública. E esta discussão não será a última. Certeza disso, tenho eu de sobra.
Acho, isso sim, ao contrário do que li em imensos sítios, que a discussão marginal até terá sido positiva, ao instalar entre as filas do auditório parlamentar, os bancos corridos e sórdidos da tasca nacional, (daquelas que o imaginário popular traz à memória e não os novos estabelecimentos que por aqui se vêem), mais os vapores do vinho a martelo presentes na atmosfera desses antros, e o cheiro a ranço que penetra nas fibras da roupa e se recusa a sair. Por momentos, foi o país real que entrou por aquelas paredes dentro, se instalou momentaneamente naquele ambiente imaculado, museológico até, tomou conta da energia reinante e, qual vendedor ambulante acossado, retirou veloz pelas escadarias imponentes com a trouxa debaixo do braço, e retornou ao velho casario.
E está tudo bem.
Só e preciso é que não se passe do vernáculo, às catanas, à vingança corpórea e selvagem, que esse é território de onde não se regressa, ou de onde dificilmente se retorna. Enquanto as coisas ficarem no palavrão, muito bem vai o mundo. Não há nada como um bocadinho de sal e pimenta no marasmo estéril da discussão política em Portugal. Ao menos assim, sempre se vê um pouquinho de alma nos jovens políticos portugueses, profissionais de uma arte em franca expansão.

segunda-feira, março 02, 2009

da polícia de segurança púbica e outras notícias

O estranho caso dos livros pornográficos apreendidos numa feira do livro em braga, e que afinal não eram pornográficos, aborrece-me triplamente. E triplamente porque;
um: foi em braga que aconteceu;
dois: envolveu pessoas por quem tenho estima: o empresário livreiro, e o segundo comandante da PSP;
e três, porque há mais de trinta anos que Portugal não assistia a uma coisa destas, se bem que, com o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, tivesse havido qualquer coisa indiciadora de censura, com o secretário de estado remetido ao silêncio – se bem me lembro – deixando o protagonismo do gesto censório ao sub-secretário de estado. É o que dá, em questões de arte e cultura, haver pessoas a pensar pela sua exclusiva cabeça, abençoadas pela seu único e ditador pensamento.
Mas a propósito do tanto que já se disse e já se escreveu sobre o quadro e sobre a situação embaraçosa a que deu azo, quero, ainda assim, dizer meia dúzia de coisas que me ocorreram e secretamente me embaraçaram, quando vi a notícia:
A reprodução do quadro, na imprensa escrita pelo menos, vinha imediatamente catalogada como sendo de Gustave Courbet, como estando exposta no Museu D’Ordsay e isso, ora aí está, tirava todo o espaço de condescendência que pudesse existir, em relação à posição da Polícia.
(Não sei quem foi que na imprensa – Pedro Mexia? Cintra Torres? - terá ousado fazer um trocadilho muito bem disposto – e inspirado – com a sigla PSP, como podendo significar Polícia de Segurança Púbica. )
Que existiam dois crimes naquela apreensão, disse-se: um que derivava do facto censório em si mesmo; e outro que advinha da ignorância dos guardas que desconheciam a importância da obra. Mas convenhamos, aos homens da polícia não se pede exactamente que sejam cultos, que estejam na posse de dados que escapam ao mais normal dos cidadãos. É-lhes exigido, isso sim, cuidado na observação da lei, e nisso não devemos ser condescendentes. Quanto ao resto... E depois, que chatice, tenho consideração pelo segundo comandante que deu a cara pelo ocorrido. Conheci-o há uns anos, e fiquei com uma excelente impressão dele.
Mas realmente de notável, o espaço que Braga ocupou na atenção dada às notícias mais ou menos escabrosas daquele dia: no jornal Público, na página ímpar, a notícia da censura da vagina de Courbet, salvo seja, e na página par, a notícia que dava conta, essa sim pornográfica por demais, da acusação em tribunal, de um poderoso empresário de Braga, por corrupção activa para acto lícito – o que é que isto quer dizer? – «castigando-o» com uma multa de cinco mil euros. Cindo mil euros. Isto sim, é pornografia e da grossa.
Mas por aquele tempo, outras havia para registar, publicadas umas páginas antes e outras depois, tão pornográficas como estas, ou mais ainda. Senão vejamos:
Uma notícia dava conta da exigência de um pai, ferido pela morte de um filho electrocutado num semáforo do Campo Grande (creio), uma tragédia ocorrida há uns anos, e a quem a Câmara municipal de Lisboa indemnizou (tenho muitas dúvidas no campo estrito da ética, deste tipo de indemnizações), e que agora exige o cumprimento de uma outra promessa autárquica, nem mais nem menos que a atribuição do nome do rapaz a uma rua da capital…
E que dizer da nomeação para rei de um Carnaval qualquer, de um rapazola, irmão inocente de um modelo que tentava ser actor nos morangos com açúcar e que morreu numa curva da vida carregado de estupefacientes que usava, diz-se, para aguentar o ritmo estúpido da vida que levava e que aceitou viver, precisamente porque é irmão do falecido?
E que dizer da notícia da taróloga Maya, agora pivot de uma televisão, a levantar a blusa à saída do talho, perdão da clínica, para mostrar as mamas novas adquiridas num supermercado de carne, algures em Lisboa ou nos arredores?
Mas voltando a Courbet e à célebre vagina, e só para rematar: a desculpa do segundo comandante, por quem, repito, tenho estima, invocando razões de segurança, esconde qualquer coisa.
Quem é que verdadeiramente está por trás da história?
Que poderes se escondem?
Quem fez as denuncias?
Quem é que se melindrou com a capa do livro? Essa é a história que não sabemos e que, se calhar, nunca iremos saber.

crises

Acompanhei de perto algumas das lutas estudantis. Estive perto de muitas reivindicações, de anseios genuínos, de algumas decisões erradas, mas também, é justo dizê-lo, de muitas decisões justas, fruto de muitas preocupações sérias.
Mas nunca percebi a cedência das associações em matérias que me pareceram, desde sempre, coisa errada. Uma das decisões que me pareceram menos certas, para usar um eufemismo, foi a questão das propinas. Talvez porque se pensasse que a luta contra as propinas era uma batalha perdida, as associações académicas – e a do Minho especialmente – envolveu-se numa luta política (e isto equivale a dizer a uma luta discutida, negociada) por um serviço social abrangente, capaz de corrigir as assimetrias que o sistema de pagamento obrigatório iria promover. Nem era difícil chegar a essa conclusão. Numa sociedade desigual, com fortes assimetrias económicas, e as outras que lhe estão adstritas, a obrigatoriedade de pagamento da educação, uma das bandeiras de Abril de 74, tornou ainda mais desigual a coisa. Vivia-se o tempo do menos estado mas melhor estado. Balelas, como se comprovou, que se foram consentindo e que agora deram nisto… O argumento perante a dificuldade de alguns – tantos – estudantes, em pagar as famigeradas propinas, logo era rebatido com o contra-argumento das mais valias sociais que o estado estava disposto a oferecer aos estudantes: conforme a folha de pagamento de impostos dos papás, assim os filhos eram ressarcidos com abonos e não sei que mais. Tudo tretas, como era de calcular. Porque se a proposta do estado fosse bondosa, far-se-ia exactamente ao contrário: ninguém pagava e, depois de analisadas as folhas de impostos dos paizinhos, os que mais ganhassem, mais pagavam e assim por diante. Mas isso, disse-se, era impossível. Claro está que quem paga a factura, nestes casos, é sempre o mexilhão, ou seja, o assalariado que tem de expor na famigerada folhinha do IRS todos os rendimentos auferidos, enquanto os patrões podem esconder os proveitos como bem entendem. Não por acaso, no parque de estacionamento aqui de Santa Tecla, durante uns tempos, estacionavam alguns carros de valor mensurável, apesar dos seus proprietários serem bolseiros, com direito a bolsas, residência e não sei que mais. Coisas desta democracia.
Claro que em tempos de crise, o problema tende a agravar-se. Assim, foi sem espanto que li, um dia destes, num jornal qualquer, a notícia que dava conta das dificuldades de imensos estudantes em pagar propinas. Dos atrasos em muitos pagamentos e do que isso representa para as universidades, necessitadas desses recursos para a sobrevivência das escolas, apesar de se dizer, quando se implementou essa obrigação, que era dinheiro destinado à acção social escolar. Mais lérias, portanto. Mas, mais grave ainda: da universidade da beira interior, chegam-nos notícias a dar conta do recurso de não se sabe exactamente quantos estudantes, ao banco alimentar contra a fome, sendo que muitos mais, tantos tantos, não o fazem por vergonha.
Vergonha que devia ter o Estado, que deixa que estas coisas aconteçam. Que desbarata competências como se elas valessem zero; que permite que a clivagem entre alunos se cave cada vez mais. Já não bastava as diferenças incontornáveis que derivam do facto de uns terem biblioteca em casa e outros não. De uns terem estudado em colégios particulares e outros não. Vergonha.