quarta-feira, fevereiro 29, 2012

do teatro...

À medida que as horas se vão lisboetamente percorrendo e que os passos se repetem pelas calçadas rotineiras dos mesmos itenerários às mesmas horas, vou-me cruzando com companheiros que têm, nos tempos que correm, a ingrata missão de programar espectáculos para as suas companhias e projectos teatrais. E cruzo-me com eles hoje para logo depois me voltar a cruzar com eles num amanhã ao virar a esquina do tempo, e assim sucessivamente, numa rotina em espiral no absurdo animal repetitivo dos dias multiplicados. E, claro, as conversas repetem-se em redor da mesma fogueira, ora com um, ora com outro, a crise em brasa, chispas que nos vão queimando os olhos e alimentando a indignação.

Estruras há, desde grandes companhias a ouras mais pequenas, em que os cortes chegam aos 40%, precisamente a verba que os diferentes orçamentos desenhados para as deversas estruturas, têm dedicada à produção. Que quer significar uma de duas coisas: ou as estruturas despedem pessoas e ficam sem gente para fazer o que quer que seja; ou cumprem os compromissos que têm asumidos com os seus colaboradores e ficam sem dinheiro para produzir espectáculos.

Um dilema, convenhamos, difícil de resolver.

E o país teatral vai-se alimentando e polemizando assim, divergindo entre o absurdo e o contra-senso, que é o que significa esta descapitalização do tecido teatral, este desinvestimento que nunca foi investimento, este suprimir de migalhas entregues pela caridade de um estado déspota e sedento de euros, qual crise qual carapuça, que o que interessa não é resolver a dívida, que nem existe, o que existe e o que interessa é o compromisso de continuar a alimentar bocas ávidas e gulosas que servem interesses instalados e máquinas a precisar de óleo em permanência. Este é o rosto cruel da crise. O primado do indivíduo em ascenção escabrosa, ou a manutenção do indivíduo e da sua família no alto da cúpula estupidamente cara.

O teatro, esse, pode ser algo comestível, pastilha elástica que se usa e deita fora, porque o estado está convencido que cultura é isso, cuspir para o chão uma massa qualquer já mastigada e sem sabor.

Havemos de arrancar muitos cabelos à pala desta assassina decisão.

Eu não, que o meu ano arrancou esta terça: o ano europeu do envelhecimento activo e solidário entre gerações. Só que comigo não há solidariedade que me valha, nem actividade que me mantenha. Com tanto arrepelar de cabelo, ficarei careca mais cedo do que era suposto. isto vai ser um país de carecas.

quarta-feira, fevereiro 15, 2012

pieguices

Com o passar dos dias, com o lento percorrer do tempo, as coisas político-administrativas vão ficando mais claras, mais obviamente definidas, menos máscara e mais descarnado rosto, germânica cara merkeliana, a sensualidade mandada às malvas, o prevalescente punho bávaro a dar cartas, que o trunfo não é obviamente copas, o trundo há-de ser ouros, e se for preciso usar-se-ão páus ou espadas empunhadas pelos patrões descarnados que por aí abundam, e na parte mais afiada do longo instrumento, nós, o nosso peito em estado de ‘aflição’.

Não é que as coisas se tenham alterado por aí além neste apiegados últimos dias. As coisas já estavam mais ou menos assim. Só que agora a bota condiz com a perdigota; às mãos do marionetista, associam-se os fios das bandeiras; às vozes os rostos; ao despotismo, os déspotas; aos bigodes mínimos, a bocarra maxima.

A Portugal, país e pessoas, definido que está o dominador, resta-lhe ir sendo. Resta-lhe deixar ir escorrendo o que ainda lhe pertence, dedos e anéis em estertor, e esperar que passe despercebido. Ou, não passando, ir dividindo o poder dos que mandam em si (quer dizer, em nós), dos que têm autoridade, dos que determinam os nossos futuros sombrios, por outros agentes dominantes, ir variando os poderes e esperar que eles nunca se entendam na prepotência, no despotismo, esperando ver cumpridas uma das premissas nacionais, que lembra que ‘enquanto o pau vai e vem, folgam as costas’.

Por isso, na divisão do mal pelas aldeias, vamos dando uma no cravo e outra na ferradura. Estamos algemados à Alemanha (e à França, pois, mas sobretudo à Alemanha que é quem controla o poder financeiro e político – porque económico - europeu) por força dos contratos que celebrámos embalados no sonho de uma europa comunitária, soma de vários estados, numa espécie de frente unida contra a ideia dos estados - também eles unidos - da américa. Mas, por via das dúvidas, também nos entregamos um pouco à China, pelo menos vinte por cento do nosso capital energético; um pouco ao Brasil; um pouco a Angola; um pouco, calcule-se, a Timor, que já se ofereceu para comprar uma parte da nossa dívida; um pouco aos capitalistas nacionais que são, também, representantes de um certo internacionalismo, e por aí adiante. A ideia acho que é esta: quando a coisa der mesmo para o torto, pôr todos aqueles a quem devemos, à pancada, para ver quem é que nos parte mais os dentes, quem é que nos esfarcela mais as costas. E enquanto se degladiam os nossos torturadores, o torcionado descansa.

É, convenhamos, uma estratégia um pouco infantil.

Mas é a que temos…

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

dia da rádio

A invenção da Rádio, quisesse ela ser o que quisesse quando a inventaram, ou os que a inventaram e desenvolveram almejassem o que quisessem, aproximou as pessoas, tornou o mundo um pouco mais pequeno. As coisas passaram a poder ser ditas muito mais no hall do ouvido, que gritadas para longe, para o quintal do coração. As palavras, que é delas que me faço parte interessada, puderam ser vertidas aqui mesmo, no funil do ouvido e, por ele, na bacia da alma, largo lago de emoções, informadas ou não, onde se espelham os reflexos dos tempos que vamos vivendo, história e memória de braço dado.

E porque a Rádio é algo que fala aos homens, pode ser por isso um instrumento do social, algo que combate as solidões, as que matam e as que móem, que narra o mundo (pois claro), mas também que o explica, desmistifica, pulveriza, é uma ferramenta que apetece controlar, porque controlando-a, controla-se a vontade do homem e, por ela, o seu destino. Por isso é perigosa a língua da Rádio, que a perversidade do homem e a sua ganância endógena, de tudo se serve para tirar desforço, proveito e riqueza material. Onde, num primeiro impulso – se é que o houve – estava a pessoa humana e a sua dignidade, num segundo momento surgiu a perversão. E embrulhada na bandeira da liberdade e da democracia, emergiu a manipulação, que não precisava dessas bandeiras para ser o que é, hipocrisia em estado social.

Num plano ideal, a Rádio deveria ser só isto, espaço de liberdade, coisa plural, das minorias, que de alguma forma pudesse ser equilibrador das vozes que se manifestam e das que não têm espaço de afirmação, das músicas que se ouvem menos, mas também das que se ouvem mais, porque umas não existem – no plano da definição – sem as outras.

Num determinado momento da sua afirmação pública, recordo com saúdade os tempos em que na Rádio se contavam histórias. Com o avançar do estilhaçar das narrativas, as histórias contadas foram sendo desconstruídas, caíram em desuso canónico, desusaram-se, desistiram ou foram sendo demitidas do espaço de antena. Lembro-me e refiro-me, por exemplo, às novelas radiofónicas, coisa talvez picuinhas, paroquial, rosa pobre, arquelogia do detrito que hoje nos deprime, mas que tinha esse condão de unir os agregados habitacionais (dito de forma politicamente correcto, as famílias), inventava-lhes um horário e uma rotina, e todos sabemos como o rigor - do horário para cumprir, por exemplo - é um magnífico – digo eu – instrumento para a educação e a pedagogia.

Das novelas ao teatro radiofónico foi um passo. Ou um repasso, porque não sei qual terá sido a primeira manifestação desta tendência narrativa.

Recordo com saúdade os tempos em que se podia ouvir na telefonia uma peça de teatro. E recordo que alguns dos maiores vultos da literatura, dramática ou não, escreveram para ser lidos na Rádio e, por ela, para serem ouvidos em casa.

Há poucos dias, tive um contacto imprevisto à porta dum teatro, com um dos velhos vozeirões da nossa Rádio, mais precisamente do Rádio Clube Português, e dos tempos em que eu, criança, - há quanto tempo isso foi… - era assíduo ouvinte dos Parodiantes de Lisboa. Pois à saída de um teatro, num friorento domingo à tarde, um desses homens cuja voz nunca esqueci mas cujo rosto nunca até então conhecera, esperou-me para, no correr da conversa, se confessar um velho parodiante e as saúdades dos tempos que não voltarão. E eu liguei, por fim, a voz ao rosto e saúdei-o pelas inexplicáveis memórias de que sou contentor.

A Rádio é, para mim, esta voz sem rosto, este equilibrio desiquilibrado, esta humildade de se ser apenas pela metade. Mas uma metade que chega, que nos preenche, que nos basta para sermos um pouco mais felizes. Felizes interna e inteiramente. Mais felizes porque há a radio.