quinta-feira, maio 30, 2013

o circo


Muito bom dia, muito boa tarde, muito boa noite, meninos e meninas. Bem vindos ao circo, bem vindos ao maior espectáculo do mundo.
Hoje, temos um acontecimento circense verdadeiramente formidável. 
Na lista das atracções internacionais, incluídas neste elenco fora do comum, tenho a honra de apresentar, meninos e meninas, senhoras e senhores, a grande artista internacionalmente conhecida, cotada em Portugal como os portugueses no estrangeiro, com um curriculum verdadeiramente exorbitante... a grande, a enorme, a contorcionista Troika. Uma cadela arraçada de caniche, mas que ameaça morder a torto e a direito. Não estiquem a mão para ela, meninos, que ela não dá a pata, nem lhe façam festinhas meninas, que ela é de poucas alegrias. Refreem a vossa meiguice mesmo que a tentação seja muita, que o nosso seguro não suporta mais despesas para próteses. A grande Troika, a magnífica Troika, hoje, na nossa maravilhosa pista de circo. 
Apresento-vos, igualmente, a estrela emergente do momento, a grande vedeta do palhacismo português. É o palhaço que está na boca dos amantes do circo, a grande atracção destes dias, citado e achincalhado por um conhecido comentador político e tudo e tudo e tudo, que terá ultrapassado a boa educação e a lisura, e que, por força desse auto-reconhecimento já pediu desculpa, e de corda ao pescoço, percorreu de joelhos o caminho até à roulotte do ofendido... Exímio no arremesso das tartes, nas chapadas sonoras e no serrote musical, é com a voz embargada que chamo à pista, o grande palhaço Bolinhas. Além de afamado palhaço, ainda é conhecido como um exímio cuspidor de brindes e favas, conseguindo expelir ora o legume, ora o pedacinho de metal, a metros e metros de distancia com uma precisão fora do comum.
Mas no alinhamento deste maravilhoso espectáculo, teremos ainda a honra de vos apresentar em exclusivo mundial, a mulher que está a ensurdecer os portugueses amantes de coisas bizarras. A regionalmente conhecida ‘‘Garganta de Ferro’’, a girafa que suspenderia a democracia se fosse ela a mandar, (mas porque são outros que mandam e não ela, já está em desacordo), e que defendeu que nas reuniões com a caniche Troika se deve berrar a plenos pulmões, apresento-vos LAIKA, com a sua gargantilha sonora. No espectáculo de hoje, vai tentar partir com um MI colocado bem lá em cima, no cocuruto da cabeça esculturalmente cheia de laca, as lentes de vidro pelas quais o entusiasmado Peludo vê o mundo, um estimável coelho que por vontade do pai já tinha saído do espectáculo. Aliás, segundo o progenitor, o pobre animal está mortinho por abandonar o barco, farto das pulgas que neste circo abundam.
Peludo, que é o recordista do coito mais rápido que algum animal alguma vez conseguiu dar. E com um entusiasmo fora do comum, Peludo virá a esta pista aviar cerca de trezentas coelhas  em menos de três minutos e sem estarem com o cio. Incrível, meninas e meninos, senhoras e senhores.
É entrar, é entrar...
Neste país circense, La Fontaine não é uma fábula. 

sábado, maio 18, 2013

a palavra de honra


Os miúdos da quarta classe, fedelhos ainda, tiveram, na semana passada, uma experiência inolvidável, uma coisa para mais tarde recordar. Na verdade, nem foi uma, não. Foram duas. Duas experiências. Por duas vezes, os meninos subiram para as mesmíssimas camionetas, e ao som do ‘oh senhor condutor ponha o pé no acelerador’’ cumpriram a via sacra festiva do caminho das salas de exame longínquas e, por duas vezes, foram obrigados a assinar um documento onde garantiam pela sua honra, que não usavam auxiliares electrónicos - creio que telemóveis, ou lá o que quer que fosse - na feitura das provas.
Os putos, que já estavam nervosos, com a honra de putos em risco, pior devem ter ficado.
A questão, como muito bem disseram as associações de pais e os professores mais atentos, não estava na jura pela honra, mas nela própria, na honra, ainda por cima num país de desonrados, a começar pelo próprio ministro.
Peco desculpa se estou a ofender alguém, mormente o senhor ministro, mas quem prometeu aos professores - e falo dos professores em concreto, por conhecer mais ou menos bem essa… narrativa - o que o ministro Crato prometeu, para imediatamente a seguir, desdizer, quebrar a promessa, faltar ao prometido, vir agora falar de honra, ainda por cima a miúdos de nove anos, é a cereja no topo do bolo da parvoíce.
Este pais é uma anedota, pronto. O que é que e há-de fazer? É a nossa sina, sejam os ministros feitos de matéria sociológica, económica, artística ou matemática.
Percebo pouco, ou nada, de pedagogia infantil, concedo. Do exame da quarta classe, que fiz, (creio que apenas um... ), lembro que íamos à escola maior e, pronto, estava a coisa feita, o Conde Ferreira no meu caso, mas posso estar errado que a memória é coisa que está a desaparecer em mim, como o cabelo no meu caso e, já agora, a honra no ministro. A gente sabia que não podia copiar, que era proibido, e para isso lá estavam de plantão os professores passeando por entre as carteiras em fila, carteiras que, creio, nos albergavam aos pares, para que sentíssemos a tentação mas não tocássemos a maçã. Levávamos a nossa melhor roupa, nem dormíamos nessa noite e, eu em particular, levava uma caneta de tinha permanente, coisa nova nas minhas mãos, prenda antecipada, que me fazia sair da prova com os dedos todos enporcalhados da tinta preta vertida, mas orgulhosos, os dedos e eu, da prova realizada. Não me lembro de ter sido obrigado a assinar o que quer que fosse, para lá do cabeçalho das provas, em letra bem legível, redondinha, como a D. Teresa Ramos denodadamente me ensinou nos cadernos de duas linhas e como pouco tempo antes ensinara o meu pai a fazer, que quase fomos contemporâneos na escola primária que frequentámos, o Externato Infante Santo, na Figueira da Foz.
Sem juras, mas com a honra de puto imaculada, porque a honra é uma coisa de consciência e, sem ela ou com ela alterada, fora da norma, seja lá a norma o que que que seja, não há falta. É a história do livre arbítrio, mas ao contrário.
Do mesmo não se pode gabar o ministro Crato no que às promessas aos professores diz respeito.
Na honra não há propriedade comutativa. Não podemos a nosso bel-prazer, alterar a ordem dos factores.
O que é, é.

quinta-feira, maio 09, 2013

do último primeiro (de maio)


...
quando eu era miúdo, fraquinho, ignorante ainda mais do que sou hoje (valha-nos ao menos isso), incapaz de perceber a perversidade da tanta gente que teimava em humilhar o parceiro de uma maneira que, tantas vezes, me surpreendia e que eu julgava impossível, intolerável, achava-me amiúde sinceramente envergonhado desses actos.
mais ainda, se calhar, dos actos eles mesmos. da sua possibilidade. da sua existência.
essa capacidade para humilhar o mais fraco, o que está indefeso, mais do que me revoltar, entristecia-me, talvez porque me envergonhasse. ou seja: a vergonha primeiro, a tristeza depois e, por fim, a revolta, se a temperatura se impusesse e o termómetro subisse.
talvez porque eu, ainda que longinquamente e nas asas e uma possibilidade remota, me reconhecesse nesse acto (asqueroso), me sentisse sujo por, também eu, mesmo que potencialmente, pudesse praticar tal barbaridade. sei lá, de num acto de tresloucamento, pudesse bater, castigar fisicamente o parceiro. e eu sei bem que sim, que apesar da aparência calma e pacata, há um viriato em mim, ou um obelix, capaz de fazer do outro, um romano empedernido.
pouco depois, percebi que, ainda mais pornográfico do que humilhar o parceiro, é, para além disso, tirar dividendos dele e da sua fragilidade... ganhar dinheiro com ele, com a sua pobreza, com a sua simplicidade, a sua singeleza. isto, para não dizer, a sua ignorância.

vem esta prosa a propósito do dia que hoje se comemora, o dia do trabalhador neste primeiro de maio de 2013.
um ano volvido e, pelos vistos, somos novamente atropelados pela sociedade do senhor jerónimo martins, e os seus campangas, mai-la marca pingo doce que, mesmo que não cumpra, ameaçou boicotar mais um dia do trabalhador. é que pelos vistos, neste primeiro de maio, os desenvergonhados voltam ao ataque à honradez dos trabalhadores e à sua dignidade.
e, lá está, para além de os humilharem, e humilharem dupla ou triplamente, porque os levam ao supermercado neste dia sagrado, quando o trabalhador deveria era estar a manifestar o seu descontentamento pelo estado a que isto chegou (como diria Salgueiro Maia), solidários com a precariedade de tantos trabalhadores, com o desemprego de cerca de vinte e cinco por cento da população activa do país, contra os cortes anunciados de mais de seis milhões de euros no investimento do estado no cidadão e no cumprimento das suas necessidades primárias...
para além disto, ainda vai, uma vez mais, colocar o miserável contra o miserável na corrida para adquirir o último pacote de guardanapos a cinquenta por cento do preço base... e, finalmente, castiga-os uma terceira vez, fazendo com que o trabalhador compre o que não necessita, desenbolsando o que o capitalista embolsa, engordando o patrão à custa do escanzelado.
ou como à laia destas práticas, puníveis a luz de todas as regras mais básicas que vinvulam o respeito ao trabalho honesto, o dia do trabalhador está transformado, não já num dia de luta, mas num dia de luto.
e eu, como em criança, volto a sentir vergonha outra vez. e tristeza. e raiva.
...
PS: a perversidade atingiu foros incríveis porque a campanha não se realizou – ao menos isso – depois e ter sido anunciada nas redes sociais, certamente com o beneplácito do patrão, ora essa. Dupla perversidade: porque levou os trabalhadores à cadeia de supermercados; e porque nada aconteceu. Não há limites para a perfídia da ambição do patrão/capitalista empedernido. do homem, enfim...