quarta-feira, junho 25, 2008

cartazes

Na montra, destacado, um cartaz informava: os curassans são a especialidade da casa.
Não é que tivesse fome. Nada disso. Almoçara bem, estava ainda reconfortado pela refeição comida, mas o erro ortográfico foi mais forte que a minha pouca fome. Mandei vir um, um curaçan, o comboio ainda demorava, e logo à primeira dentada arrependi-me.
Enquanto maldizia o meu apetite popular e anti-gramatical, fui olhando a confeitaria. Um balcão corrido, bancos altos, algumas mesas ao fundo, um calor de ananases, e muitos mais cartazes escritos com letra manual e desenhada, que quase enchiam a parede do fundo. Pipis, moelas, francesinhas, e tantas outras iguarias, digladiavam-se pela atenção dos clientes. Havia muito para apreciar, ali. E de repente, uma folha ganhou a minha atenção. A caligrafia muito desenhada chamava-se com gestos abundantes: «neste estabelecimento não se vendem bebidas alcoólicas»… Eu imaginei que o que se diria a seguir seria «a maiores de 18 anos». Ou nem sequer imaginei. Devo ter lido e pronto. Uma coisa leva à outra. Nem se pensa nisso. Mas não. Afirmando a vista, o tamanho das letras seguintes, organizadas em palavras manuscritas, não indiciava a expressão subentendida. Não! O que se dizia era: «neste estabelecimento não se vendem bebidas alcoólicas antes das dez da manhã».
A confeitaria existe. É em frente à estação de S. Bento, na cidade do Porto.
Quem quiser beber um bagaço antes das dez da manhã, que procure outro estabelecimento.

terça-feira, junho 24, 2008

densidades populacionais

Os países, como os seres vivos, envelhecem a olhos vistos. Mais um dia gozado, menos um dia para gozar.
E envelhecem porque as suas instituições se cansam, fragilizam, colapsam se não forem reparadas a tempo, substituídas, alteradas, melhoradas.
Onde se sente de forma mais clara esse envelhecimento é, obviamente, na população, nos homens e as mulheres que constituem as suas gentes. Hoje mais do que ontem, e ontem mais que anteontem – excepção a um livro da Bíblia, onde se contam as idades de uma série de gente, e se diz que viveram até idades inverosímeis – mais Homens (com agá grande, abrangente) vivem até mais tarde, ainda que se queixem mais dos bicos de papagaio que os atormentam, reumático, osteoporose e outras doenças degenerativas. Os Homens movem-se mais lentamente, mas andam; a sua escala de valores modifica-se (os bancos de jardins, por exemplo, ficam super valorizados e passam a ser disputados como sendo, de entre os bens públicos, um dos mais apetecíveis), as prioridades diferem, e modificam-se, por isso, claro, todas as regras de socialização.
E isso acontece por mil e uma razões: porque, com os avanços que a medicina proporciona de forma cada vez mais incisiva, se vive mais tempo, com mais qualidade e, até, cada vez mais tarde; e porque, com as crises sociais e económicas que se sofrem, se fazem cada vez menos filhos, mais tardiamente, por força das carreiras profissionais, do conforto e equilíbrio das suas vidas, etc etc etc. Está certo que antigamente também havia crises e nem por isso a população decresceu… Alguns recuos populacionais devem-se mais a grandes epidemias que a outra coisa qualquer, mas o número mais ou menos normal da população logo era retomado, graças ao labor das gentes empenhadas e, sobretudo, à ausência de televisão ou outras distracções similares.
Em Portugal, há mesmo localidades que criaram já, inclusive, incentivos à natalidade, oferecendo prémios variados, benesses apelativas e, antes disso mesmo, emprego a jovens casais, casa, apoio, e eu sei lá que mais. Há outros locais que não se lhe vislumbra salvação possível, de tal modo os seus habitantes estão reduzidos a meia dúzia de velhos que fazem questão de ali acabarem os seus dias. E depois, ponto final. Provavelmente parágrafo.
Mas há sítios que, para inverter esta tendência, têm outro tipo de abordagem e, parece, com resultados muito mais interessantes. Alguns com prejuízo pessoal dos povoadores.
Por exemplo: Em Portugal, e mais precisamente em Trancoso, em anos idos, o Padre Francisco da Costa, de 62 anos, foi acusado de ter desrespeitado o seu papel de padre e ministro da Igreja, e feito filhos ao Deus dará, salvo seja... Mais precisamente 299 (214 raparigas e 85 rapazes), de 53 diferentes mulheres, entre as quais se contavam 29 das suas afilhadas, 5 irmãs, 9 comadres, 7 amas, 2 escravas, uma tia e, pasme-se, a própria mãe. Consta que o Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou em liberdade (por curiosidade, no dia 17 de Março de 1487), porque ajudou, dizia o édito real, a «povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo».
Mais recentemente, num grupo grande de raparigas de uma cidadezinha americana chamada Gloucester, resolveram engravidar. Todas até ao fim do ano. Este pacto, mantido em segredo enquanto foi possível, foi já concretizado por 17 delas, todas com idades até aos 16 anos, e supõe-se que o número engorde, isto é, engravide. Como conseguiram elas arranjar parceiros, é a dúvida que persiste. Afinal, eram quase todas menores e o acto sexual nos estados unidos, só não é castigado pela lei se os parceiros tiverem mais de 16 anos. Ora, neste caso, uma das duas partes envolvidas (as moças) estão todas abaixo dessa fasquia.
A não ser que o nosso padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, tenha ido até Gloucester, fazer umas férias. Não há um filme recente onde os tempos são misturados e o que era passado, é agora presente, dialogando com ele e conflituando mesmo?
Na América, onde tudo é em grande, tudo é possível.

quinta-feira, junho 19, 2008

o disfarce da raptora

«Que eu seja ceguinho», ou «vi com estes dois que a terra há-de comer», são expressões que, pouco a pouco, estão a desaparecer do nosso falar quotidiano. É certo que continuamos a testemunhar as mesmas coisas, ou não exactamente as mesmas coisas, mas coisas ainda mais bizarras que as que era costume observarmos, mas já não arriscamos tanto na verbalização da nossa observação e, sobretudo, na certeza dessa mesma observação, como antigamente.
A questão é que, porque exageramos ou queremos afirmar uma qualidade que não possuímos – a capacidade de observar com eficácia – na volta, somos muitas vezes (tinha escrito «sempre», mas arrependi-me) apanhados em contradição, e se não em contradição, pelo menos no pecado de valorização excessiva de um facto que pouco liga com o realmente acontecido.
Não o fazemos por mal, é certo. A questão e que estamos a ver cada vez com mais dificuldade e queremos escondê-lo. Como se alguém nos tivesse apagado a luz e, agora, apenas tacteamos o caminho à nossa frente, uma mão após a outra. O nosso problema é já um caso de natureza clínica, é uma necessidade de revisão urgente das dioptrias necessárias para o nosso conforto visual.
E é assim, caso após caso, pelo que se vai lendo e vendo na realidade nacional.
Antigamente, e ainda as há, havia numa das últimas páginas dos jornais, dois quadradinhos com desenhos quase iguais, mas que continham sete ou oito diferenças. O desafio era descobri-las. E era com um prazer grande que nos entretínhamos a destrinçar as diferenças, cuidadosamente: às vezes era um cabelo a mais na cabeça despida do homem; outras, uma prega no casaco da senhora; outras ainda, era a flor com uma pétala a menos na jarra em cima da mesa. Hoje apenas nos damos ao trabalho de fazer as palavras cruzadas, o sodoku, e pouco mais. Não treinamos a nossa capacidade de observação e os disparates, também por isso, abundam.
Bem isto à colação, e perdoe-se-me o despropósito do tema, para chegar ao caso do rapto do bebé ocorrido no hospital de Penafiel no sábado passado, creio eu. Como se sabe, num quarto da maternidade, estavam duas mulheres acabadas de parir. Uma tinha um menino no berço e outra, uma menina. Como a raptora, soube-se depois, tivesse preferido um menino para raptar, sempre dá menos chatices no futuro, pensou, foi a esta recém mãe que ela se dirigiu a requisitar o bebé para mais exames. A outra mãe assistiu a tudo. Com a oficialização do rapto, a senhora tentou ajudar o melhor que pôde. E, lá está, com grande capacidade de observação, disse ao marido e, imagino, à PJ, que a raptora tinha entre 46 e 48 anos. Assim mesmo, com esta certeza. Ao ouvir a certeza do homem na TV, porta-voz da certeza da esposa, perguntei-me se eu seria capaz de descrever, assim, alguém, de forma tão assertiva. Seria incapaz, concluí, eu que me engano tantas vezes a indicar a minha própria idade.
No dia seguinte, apanhada a raptora, as notícias eram taxativas: a rapariga, que agira sozinha, tinha 21 anos.
É desta capacidade de observação que vos falo… Não treinamos… Que teria a rapariga de 21 anos feito, para se fazer passar por uma mulher entre os 46 e os 48? Colou uma barba, tipo as mulheres dos Monthy Ptthon, tal como os homens do grupo o faziam? Estão a lembrar-se daquela cena do apedrejamento no filme A Vida de Bryan? Aqui o filme é outro. O disfarce da raptora é a nossa incapacidade de observação. Trata-se de falta de treino. Ou como dizia Mourinho a propósito de um brasileiro que vai jogar na sua equipa: se não dormir e treinar pouco, vai ser uma chatice.

domingo, junho 08, 2008

histórias de camarim, 10 - o fantasma

Aquela era uma noite como outra qualquer. Nem mais nem menos que todas as outras, se exceptuarmos a primeira.
A sala de espectáculo nem estava absolutamente cheia, (já não me lembro qual era o dia da semana e, para esse efeito, o dia da semana não é coisa despicienda), e o tempo, os minutos longuíssimos, como em todos os outros dias, indiferentemente de ser terça ou sábado, custavam a passar. O intervalo já tinha acontecido, a confraternização já se dera, e a peça de teatro A DAMA DO MAR, um texto do senhor Ibsen, que se representava no Teatro Carlos Alberto e cujo elenco integrei, prosseguia a caminho do encontro fundamental.
E aqui convêm que faça um compasso de espera e conte a história, mesmo que do ponto de vista da personagem que eu defendia - expressão horrível, mas que, neste textículo, serve perfeitamente. E eu, di-la-ia assim: uma mulher vivia dividida entre a memória de uma estranha relação com um estranho marinheiro, acontecida dez anos antes, e que acontecimentos excepcionais interrompeu abruptamente, e um outro homem, médico e viúvo, que com ela casara posteriormente. Acontece que, depois de longa ausência, o marinheiro regressa e, interpondo-se nesta nova relação – ao jeito do Frei Luís de Sousa, mas em norueguês – reivindica a antiga relação. Como esse primeiro contacto não lhe forneça indicações definitivas, marca um segundo encontro, momento em que, com todas as dúvidas dissipadas, ela o deveria acompanhar e, ambos, como no princípio, deveriam recomeçar no ponto preciso em que a sua relação havia sido interrompida.
Recapitulando: na primeira parte do espectáculo (terceiro acto), chega o marinheiro e depois de uma breve conversa, chega, também, o intervalo. O encontro final é na segunda parte do show, depois do intervalo, mais precisamente no quinto acto, a instantes da queda do pano, se o houvesse.
E depois deste parêntesis, regresso à história, dentro desta história.
Por razões de organização do espaço de representação, os actores - excepto eu que, nas duas aparições em cena, entrava pela plateia - estavam confinados aos bastidores de onde não podiam sair, emparedados num beco sem saída, a que só o intervalo e o final do espectáculo, em duas respirações, deixava escapatória. Nos camarins, a minha solidão era maior, também por isso: duas curtas cenas e muita espera solitária. Depois do intervalo, e como sempre fazia, deixava escorrer o tempo. Deitava-me quase sempre no sofá do corredor, com a pistola com que haveria de entrar em cena pousada no peito e, em alguns momentos, um livro na mão, ou o mp3 em alta voz.
Naquele dia, ouvi passos. Estranhei. Não era suposto estar alguém nos camarins. Todos os actores eram reféns da peça, presos em bastidores ou em cena. Mas os passos eram reais, ouvia-os distintamente. Quem andava nos camarins? Os passos aproximaram-se do sítio onde eu e o sofá estávamos, um em cima do outro. Quem quer que fosse que caminhava não me via, escondido que eu estava pelo sofá e por um charriot com roupa pendurada. E cada vez mais próximos, os passos sobressaltavam-me cada vez mais. Todos os teatros têm os seus fantasmas. O Teatro S. João, no Porto, tem um a quem chamam Bébágua; o Teatro Circo tem (tinha… com as obras talvez tenha desaparecido) uma freira sensual – o sensual estou agora a inventar - que se passeava pelos corredores nocturnos. Talvez que o Carlos Alberto também tivesse um. Quando a curiosidade foi maior que a minha paciência, soergui-me no sofá para identificar o fantasma, com o revólver esquecido na mão direita e o livro abandonado na esquerda. E então, vi. Não o fantasma, mas um bombeiro, à beira de um ataque de coração, e que se tinha perdido no emaranhado dos andares percorridos pelo elevador. Surpreso com o aparecimento daquele tipo vindo do nada, e ainda por cima armado, o homem estacou. Ou então foi a farda que endureceu de repente, que petrificou e não o deixou prosseguir. A respiração ficou mais apressada. Mudou de cor. Pelo contrário, eu, na ausência do fantasma, fiquei muito mais leve, preocupado apenas com o estado de aflição do homem e acho que disse qualquer coisa estúpida, como «calma, isto é teatro», enquanto olhava para a pistola… «é de alarme»… O homem retomou a respiração, ainda assim desconfiado. Quando deu com a porta do elevador, entrou de supetão nele e, podia jurar, o elevador desceu muito mais apressado do que normalmente desce. O bombeiro deve ter regressado ao seu posto e, depois dele, ao quartel, onde deve ter contado a assustadora história a todos os camaradas. Parece que o estou ouvir: «Cuidado, que se forem ao Carlos Alberto, pode aparecer-vos um tipo grande e de cabelo muito comprido, com uma pistola na mão».
Deve ter começado comigo, a história do fantasma do Carlos Alberto. Um fantasma desesperado, que veste de preto (era dessa cor o figurino), e que mesmo deitado no sofá, não prescinde, em momento algum, da pistola furiosa com que há-de assassinar o mais incauto. Só os bombeiros, soldados da paz, é que escapam.

terça-feira, junho 03, 2008

futebolices

Ainda não se sente nas ruas portuguesas, a loucura do futebol; ainda não estão as janelas nacionais infestadas de bandeiras made in china; ainda não pára o país sempre que joga a selecção. E tudo isto porque o europeu ainda não começou. Deixem que alguém pontapeia a bolinha, feita muito provavelmente por crianças metidas em trabalhos baratos num sítio qualquer recôndito do planeta e logo verão. As bandeiras hão-de sair das lojas de trezentos chinesas e hão-de descolorar, com o tempo, nas janelas nacionais; o povo há-de sair à rua como na canção do zé cid (com a alegria que costumava ter) e não há-se ser apenas o comunidade emigrante na Suiça; o preço dos combustíveis há-de ser coisa não discutida, esquecida até, logo que os cristianos ronaldos da nossa anestesia colectiva desatem a correr na relva e a fazer fintas aos turcos e demais nacionalidades, mesmo que da Turquia nos chegue gente com sotaque sertanejo, a pedir arroz com feição e um churrasco todos os domingos.
(nós também os temos por cá)
Tem de ser, está visto, e se tem de ser, que o seja com estilo. Vai daí, pede-se à Fátima Lopes que desenho os fatinhos dos meninos. A coisa é talhada, composta e montada em Alcains, porreiro pá, mas o tecido é italiano.
Chiça, que podíamos ser um niquinho mais patriotas…
Mais ou menos isto deve ter pensado o presidente da república. E vai daí, toca a receber a comitiva no palácio presidencial, toca a servir um suminho de laranja para empurrar uns croquetes acabadinhos de fritar, tudo a bem da nação.
A questão é: porque carga de água é que o presidente da república há-de receber os jogadores no palácio de Belém? E se a resposta fôr, porque Sampaio também os recebeu, não deve ser considerada válida. Será que é porque os jogadores representam o entusiasmo de milhares de portugueses? De milhões de portugueses? Bem, é uma resposta possível. E assim sendo, Cavaco sente-se justificado, porque ao saudar aqueles bravos, estará a saudar os milhões que se reconhecem neles que, sem reservas, os apoiam, os empurram até sabe-se lá onde. Mas sendo assim, Cavaco terá de receber em Belém outros portugueses e não consta que o faça, ou que pense nisso sequer. Os soldados que vão para a Bósnia e outros sítios de conflito, por exemplo. Pronto, são só meia dúzia e não representam mais do que o que eles são efectivamente: meia dúzia. A não ser que vão para Timor. Aí, sendo igualmente meia dúzia, representam um pouco mais, representam-nos a todos nós, mesmo se Timor não está na moda e está, até, um pouco fora da agenda. Mas outro caso: os milhões de emigrantes que saíram do país e para cá, mês após mês, remetem euros e demais moedas, não mereceriam, no mínimo, um croquete no palácio presidencial, fresquinho, antes de embarcar no sud-express para a gare de Orly?
Há coisas que não se percebe. Ou percebe, mas o melhor mesmo era não perceber.