quinta-feira, junho 19, 2008

o disfarce da raptora

«Que eu seja ceguinho», ou «vi com estes dois que a terra há-de comer», são expressões que, pouco a pouco, estão a desaparecer do nosso falar quotidiano. É certo que continuamos a testemunhar as mesmas coisas, ou não exactamente as mesmas coisas, mas coisas ainda mais bizarras que as que era costume observarmos, mas já não arriscamos tanto na verbalização da nossa observação e, sobretudo, na certeza dessa mesma observação, como antigamente.
A questão é que, porque exageramos ou queremos afirmar uma qualidade que não possuímos – a capacidade de observar com eficácia – na volta, somos muitas vezes (tinha escrito «sempre», mas arrependi-me) apanhados em contradição, e se não em contradição, pelo menos no pecado de valorização excessiva de um facto que pouco liga com o realmente acontecido.
Não o fazemos por mal, é certo. A questão e que estamos a ver cada vez com mais dificuldade e queremos escondê-lo. Como se alguém nos tivesse apagado a luz e, agora, apenas tacteamos o caminho à nossa frente, uma mão após a outra. O nosso problema é já um caso de natureza clínica, é uma necessidade de revisão urgente das dioptrias necessárias para o nosso conforto visual.
E é assim, caso após caso, pelo que se vai lendo e vendo na realidade nacional.
Antigamente, e ainda as há, havia numa das últimas páginas dos jornais, dois quadradinhos com desenhos quase iguais, mas que continham sete ou oito diferenças. O desafio era descobri-las. E era com um prazer grande que nos entretínhamos a destrinçar as diferenças, cuidadosamente: às vezes era um cabelo a mais na cabeça despida do homem; outras, uma prega no casaco da senhora; outras ainda, era a flor com uma pétala a menos na jarra em cima da mesa. Hoje apenas nos damos ao trabalho de fazer as palavras cruzadas, o sodoku, e pouco mais. Não treinamos a nossa capacidade de observação e os disparates, também por isso, abundam.
Bem isto à colação, e perdoe-se-me o despropósito do tema, para chegar ao caso do rapto do bebé ocorrido no hospital de Penafiel no sábado passado, creio eu. Como se sabe, num quarto da maternidade, estavam duas mulheres acabadas de parir. Uma tinha um menino no berço e outra, uma menina. Como a raptora, soube-se depois, tivesse preferido um menino para raptar, sempre dá menos chatices no futuro, pensou, foi a esta recém mãe que ela se dirigiu a requisitar o bebé para mais exames. A outra mãe assistiu a tudo. Com a oficialização do rapto, a senhora tentou ajudar o melhor que pôde. E, lá está, com grande capacidade de observação, disse ao marido e, imagino, à PJ, que a raptora tinha entre 46 e 48 anos. Assim mesmo, com esta certeza. Ao ouvir a certeza do homem na TV, porta-voz da certeza da esposa, perguntei-me se eu seria capaz de descrever, assim, alguém, de forma tão assertiva. Seria incapaz, concluí, eu que me engano tantas vezes a indicar a minha própria idade.
No dia seguinte, apanhada a raptora, as notícias eram taxativas: a rapariga, que agira sozinha, tinha 21 anos.
É desta capacidade de observação que vos falo… Não treinamos… Que teria a rapariga de 21 anos feito, para se fazer passar por uma mulher entre os 46 e os 48? Colou uma barba, tipo as mulheres dos Monthy Ptthon, tal como os homens do grupo o faziam? Estão a lembrar-se daquela cena do apedrejamento no filme A Vida de Bryan? Aqui o filme é outro. O disfarce da raptora é a nossa incapacidade de observação. Trata-se de falta de treino. Ou como dizia Mourinho a propósito de um brasileiro que vai jogar na sua equipa: se não dormir e treinar pouco, vai ser uma chatice.