domingo, junho 08, 2008

histórias de camarim, 10 - o fantasma

Aquela era uma noite como outra qualquer. Nem mais nem menos que todas as outras, se exceptuarmos a primeira.
A sala de espectáculo nem estava absolutamente cheia, (já não me lembro qual era o dia da semana e, para esse efeito, o dia da semana não é coisa despicienda), e o tempo, os minutos longuíssimos, como em todos os outros dias, indiferentemente de ser terça ou sábado, custavam a passar. O intervalo já tinha acontecido, a confraternização já se dera, e a peça de teatro A DAMA DO MAR, um texto do senhor Ibsen, que se representava no Teatro Carlos Alberto e cujo elenco integrei, prosseguia a caminho do encontro fundamental.
E aqui convêm que faça um compasso de espera e conte a história, mesmo que do ponto de vista da personagem que eu defendia - expressão horrível, mas que, neste textículo, serve perfeitamente. E eu, di-la-ia assim: uma mulher vivia dividida entre a memória de uma estranha relação com um estranho marinheiro, acontecida dez anos antes, e que acontecimentos excepcionais interrompeu abruptamente, e um outro homem, médico e viúvo, que com ela casara posteriormente. Acontece que, depois de longa ausência, o marinheiro regressa e, interpondo-se nesta nova relação – ao jeito do Frei Luís de Sousa, mas em norueguês – reivindica a antiga relação. Como esse primeiro contacto não lhe forneça indicações definitivas, marca um segundo encontro, momento em que, com todas as dúvidas dissipadas, ela o deveria acompanhar e, ambos, como no princípio, deveriam recomeçar no ponto preciso em que a sua relação havia sido interrompida.
Recapitulando: na primeira parte do espectáculo (terceiro acto), chega o marinheiro e depois de uma breve conversa, chega, também, o intervalo. O encontro final é na segunda parte do show, depois do intervalo, mais precisamente no quinto acto, a instantes da queda do pano, se o houvesse.
E depois deste parêntesis, regresso à história, dentro desta história.
Por razões de organização do espaço de representação, os actores - excepto eu que, nas duas aparições em cena, entrava pela plateia - estavam confinados aos bastidores de onde não podiam sair, emparedados num beco sem saída, a que só o intervalo e o final do espectáculo, em duas respirações, deixava escapatória. Nos camarins, a minha solidão era maior, também por isso: duas curtas cenas e muita espera solitária. Depois do intervalo, e como sempre fazia, deixava escorrer o tempo. Deitava-me quase sempre no sofá do corredor, com a pistola com que haveria de entrar em cena pousada no peito e, em alguns momentos, um livro na mão, ou o mp3 em alta voz.
Naquele dia, ouvi passos. Estranhei. Não era suposto estar alguém nos camarins. Todos os actores eram reféns da peça, presos em bastidores ou em cena. Mas os passos eram reais, ouvia-os distintamente. Quem andava nos camarins? Os passos aproximaram-se do sítio onde eu e o sofá estávamos, um em cima do outro. Quem quer que fosse que caminhava não me via, escondido que eu estava pelo sofá e por um charriot com roupa pendurada. E cada vez mais próximos, os passos sobressaltavam-me cada vez mais. Todos os teatros têm os seus fantasmas. O Teatro S. João, no Porto, tem um a quem chamam Bébágua; o Teatro Circo tem (tinha… com as obras talvez tenha desaparecido) uma freira sensual – o sensual estou agora a inventar - que se passeava pelos corredores nocturnos. Talvez que o Carlos Alberto também tivesse um. Quando a curiosidade foi maior que a minha paciência, soergui-me no sofá para identificar o fantasma, com o revólver esquecido na mão direita e o livro abandonado na esquerda. E então, vi. Não o fantasma, mas um bombeiro, à beira de um ataque de coração, e que se tinha perdido no emaranhado dos andares percorridos pelo elevador. Surpreso com o aparecimento daquele tipo vindo do nada, e ainda por cima armado, o homem estacou. Ou então foi a farda que endureceu de repente, que petrificou e não o deixou prosseguir. A respiração ficou mais apressada. Mudou de cor. Pelo contrário, eu, na ausência do fantasma, fiquei muito mais leve, preocupado apenas com o estado de aflição do homem e acho que disse qualquer coisa estúpida, como «calma, isto é teatro», enquanto olhava para a pistola… «é de alarme»… O homem retomou a respiração, ainda assim desconfiado. Quando deu com a porta do elevador, entrou de supetão nele e, podia jurar, o elevador desceu muito mais apressado do que normalmente desce. O bombeiro deve ter regressado ao seu posto e, depois dele, ao quartel, onde deve ter contado a assustadora história a todos os camaradas. Parece que o estou ouvir: «Cuidado, que se forem ao Carlos Alberto, pode aparecer-vos um tipo grande e de cabelo muito comprido, com uma pistola na mão».
Deve ter começado comigo, a história do fantasma do Carlos Alberto. Um fantasma desesperado, que veste de preto (era dessa cor o figurino), e que mesmo deitado no sofá, não prescinde, em momento algum, da pistola furiosa com que há-de assassinar o mais incauto. Só os bombeiros, soldados da paz, é que escapam.

1 Comments:

Blogger Unknown said...

Desculpem mas é demasiado engraçado...estou farta de rir....lololol.
Eu vi a peça, reconheço a personagem.lolol. Pobre do bombeiro.
A sua figura já de si peculiar: alta...muito alta, com os cabelos compridos, uma corcundita divertida aliado ao figurino preto, mais o facto de estar nesse corredor escuro deve ter deixado o bombeiro petrificado. É muito engraçada e a forma como descreve é ainda mais. A sério estou lavada em lágrimas de tanto rir.
Parabêns pela sua interpretação na peça e do luís araújo.

10:14 da tarde  

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