quinta-feira, abril 24, 2008

o caminho faz-se caminhando


Quantos quilómetros?
Como houvesse barulho demais no comboio, ou porque as linhas – telefónicas – estivessem condicionadas pela precariedade da rede, resolveu perguntar:
Quantos quilómetros é que são?
E do lado de lá, a resposta a exigir estupefacção:
Vinte e um?
Pareciam quilómetros a mais.
Vinte e um? Reforçou. Talvez sejam quilómetros a mais, pá.
Uma das suas varizes desatou aos berros, estridente, fazendo abanar a pela da canela onde, desde há uns anos, vive confortável. E apontava para a parceira do lado, da perna ao lado, como se ela fosse o elo mais fraco, coisa incapaz de suportar tanto andamento, tanta trepidação, tanto esforço.
E ria-se, com gosto, da proposta para aquele domingo soalheiro, enquanto se automassajava.
Às oito da manhã, o dono das pernas e das varizes lá estava, bem disposto, e pronto para a viagem.
Que porra de calças são essas? Vens de pijama?
Está bem que as calças eram às riscas, que não eram aquelas coisas para profissional caminhar que se exibia na mesa ao lado, mas eram umas belas calças, de caminheiro hippie, que o homem das pernas tinha lá por casa e a que lhe apetecera dar serventia.
Olhou para elas e disse: vamos passear para a estradinha dos romanos?
Qual estradinha?, perguntou a risca mais estreita. A Via Nova, a Dezoito, respondeu a perna, numa conversa próxima. Que a ideia, disse o homem das calças, era fazer o caminho entre a milha treze e a vinte e seis, na Geira Romana.
Os primeiros passos foram resolvidos de carro, que as primeiras milhas é dos pardais. De autocarro fazia-se o percurso até à milha treze – que haveria de ser, praticamente, a XIV. Os que não se inscreveram a tempo, como o homem das calças e os amiguinhos mais apetrechados, foram de carro atrás do autocarro, que a inscrição fora efectuada já fora de tempo e fora do limite das inscrições, confirmando que a cena das caminhadas está na moda e veio para ficar. Depois da marcha, os sobreviventes haveriam de fazer de táxi o caminho até ao carro e de lá regressariam a Braga com os restos mortais expostos em automóvel ligeiro.
Mas no início do passeio, tudo calmo, nada de especial, dificuldade nicles, tudo ok.
Convenceu-se o das calças que a coisa era fácil de fazer porque reparou na presença, entre o grupo, de uma senhora com idade para ser sua avó, e um bebé que seguia em apetrecho particular, às costas do pai, mas de botinhas calçadas. Se estes dois aguentam, pensei, eu também hei-de aguentar, disse o mais alto possível para dentro da sua cabeça, enchendo-se de convicção.

Primeiro foi estar atento para verificar sinais que lhe dissessem se aguentaria a prova ou não. Num momento do percurso, os braços e, sobretudo, as mãos começaram a ficar adormecidas. Abria e fechava as mãos com energia e sentia os dedos mais gordos que o habitual. O que é que se passa?, disse para si mesmo. Querem ver que engordei? Percebeu que era a pressão da mochila nos ombros que estava a dificultar a circulação de sangue. Ajeitou a mochila de outra maneira e melhorou sensivelmente. Se era ataque de coração já tinha passado. Por outro lado, no meio do monte, talvez por ir concentrado no caminho e nas sinuosidades do mesmo, de cada vez que levantava os olhos e olhava a paisagem enorme à sua volta, sentia uma espécie de nebulosidade, pouco contraste na visão. Não era enjoo, era a vista turva e não tinha metido álcool nenhum no bucho, que o café da manhã não tinha cheirinho sequer. Somou essa sensação ao facto de já não sentir tantas moscas à sua volta e percebeu que estava com o açúcar demasiado baixo. Comeu uma sandes de marmelada industrial, daquela mais munida de açúcar, que fizera na noite anterior e pouco depois, isso sim, a visão clareou, focou na perfeição e tudo correu pelo melhor. Quer dizer, andou pelo melhor.
Milha a milha, o terreno ia sendo vencido. A paisagem era esplendorosa. Na milha XX pararam para almoçar junto a uma queda de água. Os mais habituados à coisa vinham munidos de hidratos de carbono, massas e arroz. Os demais, traziam sandes e leites e iogurtes, e fruta. Foi isso mesmo que comeu. Para lá de um leitão à Bairrada, batata frita, sopa, mousse de chocolate, e café. Isso apenas imaginou, mas a sandes soube-lhe à refeição imaginada. O barulho da água na curva do caminho, fez o resto. Enquanto os demais enfardavam as poucas coisas e frugais de que estavam munidos, o grupinho afastou-se à procura de um relvado e bateu uma sorna. Quando recomeçou a caminhada, acordaram – ou foram acordados – foram mimoseados com alguns impropérios (toca a andar romanos da treta) e recomeçaram a caminhada.

O final coincidiu (?) com um restaurante/bar/café com esplanada para um picadeiro onde alguns cavalos andavam à volta com meninos empoleirados neles.
As cadeiras foram muito apreciadas, mas a sede…
Quantas calorias se perderam pelo caminho? Reponham-se em cerveja. Fresca, se faz favor.