quinta-feira, abril 03, 2008

a semana santa

Estou em Braga há já muitos anos e, por estranho que possa parecer, ainda não tinha tido a curiosidade de ir espreitar as afamadas procissões da Semana Santa. Quer dizer, curiosidade já tinha tido, sim, mas nunca fora. Delas já me tinham chegado relatos diversos, desde os mais bucólicos aos mais urbanos, dos mais religiosos aos mais profanos, senão mesmo hereges. Este ano enchi-me de brio e lá fui. Às três.
À da burrinha, cheguei ao mesmo tempo que a dita cuja, ou pelo menos do carro que a transportou até às portas da Igreja de S. Victor. Dizem-me que, originalmente, esta era uma procissão fora do controle da Igreja, que nem sequer se realizava à quarta-feira, mas que, a pouco e pouco, ou pelo menos depois da interrupção que sofreu, ficou mais próxima da organização tradicional, mais dentro do cânone religioso, dentro da organização paroquial, até porque o regime voluntário e espontâneo deixou e ser o que era, quer em assuntos da mais elementar civilidade, quer no que a assuntos religiosos diz respeito. A procissão do Ecce Homo é, talvez a mais produzida das três, e a do Enterro do Senhor, a mais solene, e talvez por isso, a mais espectacular, se é que posso dizê-la assim.
Nas três, porém, detectei o mesmo sinal de algum desleixo estético, de alguma falta de gosto (ou de gosto perdido), ressarcidas, porém, pela fé que as alimenta, combustível que tudo resolve, que as faz andar, e que faz com que algumas coisas que a mim me pareceram mais obvias no babal, tenham significado menor, ou mais residual e despiciendo.
Nas três colhi a mesma sensação de escassez de recursos, de artifícios. Os adereços improvisados da Burrinha, por exemplo, eram pobres, desqualificados, amadores – com o respeito todo que me mereceu a manifestação. Nas três, os recursos escasseavam no que de mais elementar se lhe pedia: que fizessem o olhar das pessoas que se aglomeraram para ver passar os cortejos, subir, apreciar a iconografia religiosa exposta mais alto, uma vez que a linha do olhar, horizontal, estava preenchida com os milhares de pessoas que se acotovelavam à frente. Faltou em suma, uma espécie de efeito de verticalização, capaz de cortar a alguma monotonia que amiúde se instalou, ainda que alguns andores ou outros instrumentos, como os paliuns por exemplo, cumpram esse desiderato. E o cumpram de duas maneiras: porque se elevam; e porque se sente que são adereços com história, com passado, com memória, com sagrado dentro deles. Por outro lado, alguns efeitos, como os fogaréus e os farriococos manejadores das matracas, tão presentes na segunda procissão, contrastavam com a quase inexistência de outros picos de espectaculariedade ausentes do corso. Mas o facto de, apesar do frio, tantos deles caminharem descalços, é uma manifestação que nos estremece.
Mas quero, por outro lado, e contra esta nota, realçar a leviandade com que alguns figurantes se votam ao ofício, ofendendo até a fé dos que foram ver e participar na manifestação. Se às crianças quase tudo é permitido, já os jovens deveriam saber o que representavam no corso, o que deles se exigia, a expectativa que neles se depositava, e o desperdício que foi a participação de alguns deles, para a manifestação e para a sua própria experiência.
Apesar disso, o ambiente solene sobreviveu. E esse é, ainda assim, o mais notável de todas elas. O ambiente que se consegue criar à volta delas, mais pesado, naturalmente, na terceira que nas outras duas, conferindo a esta, uma verdade notável, que toca e que se sente.
Pena as pipocas e o algodão doce, vendidos em todo o sítio, fazendo com que a procissão fosse apenas um espectáculo, e não uma experiência com peso, que se quer guardada na memória.