Mandela
Das tantas coisas que aconteceram nas últimas duas
semanas, há uma que se impõe por todas as razões e por mais umas quantas: a da
morte de Nelson Mandela. E pronto. Morreu. Mais uma vez. O homem que sobreviveu
a tantas mortes publicitadas, parece que morreu mesmo, desta vez de forma
definitiva. Pelo menos de forma oficial, já que o presidente da África do Sul
veio comunicá-la ao país. E quando uma morte mete presidente da república...
Os jornais, e de resto todos os órgãos de
comunicação social, apressaram-se a inundar os seus canais de informação com as
tantas coisas que entretanto tinham vindo a organizar, arquivando, sobre a
personalidade e sobre a obra de tão insígne figura. O jornal Público, segundo
alguns especialistas, terá mesmo logrado fazer uma das dez mais interessantes
capas, com a notícia da morte. O que significa que até a morte trás benefícios
a alguns... É preciso, é saber. Ou não saber, que os outros inventam para si...
E aqui, neste momento da história, entramos numa
coisa que me faz muita impressão: o obituário.
Bom, o obituário é uma espécie de jogada de
antecipação dos media, à óbvia humanidade, ou fragilidade humana das pessoas.
Se se sabe que todos morreremos algum dia, e se essa hora parece estar a
aproximar-se mais desta ou daquela criatura, por esta ou por aquela razão, toca
de preparar a página de necrologia, afiar os lápis e, mais do que isso,
escrever umas quantas laudas à personalidade deste ou daquele, desde que a vida
ou a obra justifique a tinta e a electricidade que há-de ser gasta com tão
ilustre personalidade. É como se, em vida, na sua recta final, se lhe
antecipasse a morte, à sombra de uma quaquer ideia de competição com os outros
media, no afã de se ser o primeiro a chegar à saudação épica da criatura que
agora mesmo expirou. Quase que dava para dizer que se estava lá, no momento da
exalação do derradeiro suspiro, se é que é disso que se trata: suspiro e
derradeiro.
E depois entra-se noutro território que é o
laudatório, como se a morte servisse de lixívia e lavasse para todos os gostos
e fizesse desaparecer as nódoas mais entranhadas. Na perspectiva de cada um,
note-se bem...
Com a morte de Mandela, e como sempre acontece,
proliferaram as declarações provenientes dos mais variados sectores, com os
mais improvável protagonistas. Há, na morte, um apelativo qualquer que chama
uns e outros à memória mais recôndita e mais aconchegante aos interesses de
cada um. Com Mandela a coisa assumiu contornos no mínimo pornográficos. Mas é
sempre assim, diga-se. Da esquerda à direita, e perante a mesmíssima vida, os
mesmíssimos factos, se construíram verdades absolutas que servem na perfeição a
uns e outros. Até o presidente da república portuguesa, na altura primeiro
ministro, helás, numa declaração que era já um ajuste, ou acerto, a uma
declaração anterior a propósito de uma votação na ONU em que se opôs á
libertação de Mandela, ao lado da Inglaterra e dos Estados Unidos (a cuja lista
de terroristas perigosos Mandela deixou de pertender em 2008... santo deus...
quando fez noventa anos... como um presente de aniversário...), disse que
Mandela percebera lindamente a posição portuguesa (e a dele, Cavaco), e que
essa percepção terá levado o líder sul africano a abandonar a via armada
enquanto caminho para os seus objectivos libertadores e anti-racistas. Cavaco é
a prova acabada do ser capaz de tudo...
O funeral é um dia destes e, já se sabe, dois dos
oradores são Raul Castro, o irmão do lendário guerrilheiro cubano ao lado de
quem Mandela sempre esteve, e Obama, negro como Mandela, líder da nação que
votou contra a sua liberdade, tal como perseguiu, por razões idênticas, Martin
Luther King.
Para já, os órgãos de comunicação social rejubilam
com o aperto de mão trocado entre Raul Castro e Obama, inspirado pela presença
tutelar, mesmo que fúnebra, de Mandela.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home