sexta-feira, agosto 11, 2006

UM INTERVALO IMPREVISTO

Na rua a canícula acentuava-se a cada estrada atravessada.
Naquele restaurante indiano, o que mais apetecia no momento, era a concretização da promessa do ar condicionado. O ambiente era óptimo. A decoração condizente com a promessa da Índia numa rua popular de Lisboa.
Estabilizada a temperatura corporal, era agora tempo de acalmar o estômago.
O almoço prometia. E a promessa, verificaria pouco depois, haveria de cumprir-se. O almoço, de facto, estava bom. O frango estava bem temperado; o caril estava no ponto; o arroz colorido fundia na perfeição com o caril que aconchegava o frango; os molhos aromatizavam o pão de alho; o chá reconfortava a língua levemente agredida pelo picante que apetecia. Até a TV, na parede do fundo, emoldurada pelos objectos que citavam a cultura indiana e que cercavam a mesa onde me sentava, exibindo música disco originária da índia, mesmo se influenciada pela cultura ocidental mais ou menos pop, não perturbava o clima, antes fazia adensar o ar misterioso de uma cultura distante, mesmo se presente e aparentemente próxima, por força do crescimento de estabelecimentos comerciais como aquele. Mesmo os mais requintados, como parecia ser o caso.
De repente, uma quebra de energia. A iluminação eléctrica desenhada para aquele espaço desapareceu num clic do quadro eléctrico, e apenas a luz do sol, coado pelas cortinas densas, deixava vislumbrar os objectos e os clientes em volta. A TV esqueceu as imagens e ficou cínzea na esperança do milagre outra vez. Um leve movimento invisível de alguém, e a luz tornou à sala. E por um momento, milagre!, a TV ganhou cor e língua pátreas: no canal 1 da RTP, o Padre Borga a cantar não sei bem o quê e a gingar a propósito. Afinal, estava em Portugal, nada mudara. A mentira do DVD instalar-se-ia imediatamente a seguir. Tornavam as meninas indianas e os bailarinos contorcionistas a ocupar o lugar que, por momentos, fora do padre português que tem apelido de festa no nome e canta Deus como se Deus fosse um ícone mais ou menos pop-proximo. O Disco podia continuar a ser servido, junto com a ilusão de um outro lugar. O serviço religioso tornava a colocar o mundo no centro, no centro do corpo, no ventre onde se quebram e contorcem as bailarinas da música indiana.