sábado, agosto 26, 2006

notas de viagem 6

AS AVENTURAS DE UM AGENTE IMPORTANTE CHAMADO ERNESTO
5. A cultura B & B


Chefe,
Entro agora num dos capítulos mais interessantes do meu relatório, até porque durante os dias que permaneci em terras irlandesas, em nenhuma das casas onde pernoitei me foi pedido qualquer documento de identificação. Veja lá bem. Perceber-se-á, por isso, como pode ser complicado descobrir um fugitivo numa terra destas. Mas vamos aos factos.
Ao longo das estradas que bordam a paisagem irlandesa, os anúncios gritam nas bermas, chamando os corpos cansaços a um merecido descanso. Berram a cores: B & B.
Não é, afinal, impunemente, que por aqui se abandonam as regras mais básicas da condução automóvel inteligente.
Talvez valha a pena fazer aqui um parêntesis. Curvo.
Parêntesis:
Na Irlanda o código das estradas determina que circulemos pela esquerda. Que entremos nas rotundas virando sempre à esquerda e não noutro sentido qualquer. Por isso, os instrumentos de navegação, estão postos ao contrário do habitual: volante à direita, travão de mão à esquerda, manéte das mudanças à esquerda… os piscas ao contrario de cá… o lugar do morto - o diabo seja cego surdo e mudo – é o lugar que o condutor ocupa cá… etc etc etc! Felizmente que os pedais estavam, pela mesma ordem, no sítio dos pés, e não no tejadilho da viatura.
Fecho o parêntesis.
Ora, depois de umas horas a conduzir ao contrário do que instinto dita, o descanso é mais que merecido e surge como prémio para tamanho cansaço provocado e acumulado pelas mudanças revolucionárias. Aceito, pois, como coisa boa, irrecusável, o chamamento da placa e estaciono no parque de uma das primeiras casas que me aprecem, na terra onde planifiquei pernoitar. E escolho um B & B por muitas razões: porque, Um, o cansaço é grande, pois, já o escrevi; mas também porque, Dois, os preços são mais convidativos que os habituais hotéis. E por último, mas nem por isso menos importante, porque, Três, o clima nestes B & B é muito mais intimista – mesmo, familiar – que nos hotéis, por muito pequenos e caseiros que prometam – e cumpram – ser.
A coisa funciona mais ou menos assim: se alguém tem uma casa simpática, (ou nem por isso, não percebi quais eram os critérios), pode propô-la para integrar uma espécie de rede de abrigos caseiros. Oferece-se um quarto, mais ou menos organizado, com ou sem casa de banho, (preferencialmente com), e no dia seguinte, de manhã, confecciona-se e serve-se o respectivo pequeno-almoço. E as casas B & B (bad and breakfast – cama e pequeno-almoço) proliferam em anúncios variadíssimos, (à primeira vista, parece estarem afastadas todas as possibilidade B & B no centro das cidades de dimensão superior).
Há casas mais interessantes onde se ficar (e, igualmente, sítios mais bonitos que outros), e outras menos interessantes. Como em tudo na vida.
Na penúltima casa em que fiquei, fantástica, para além da qualidade do alojamento – uma casa cheia de bom gosto, bem equipada, bonita, decorada como se fora uma casa (e um quarto) igual a qualquer casa de família que se preze, – tinha, anda, a seu abono, o serviço de um pequeno almoço verdadeiramente exemplar. Senão, veja-se a lista (em anexo segue uma foto do cardápio, chefe!):

Chilled fruit juice
Cornflakes
Muesli
Rice-crispies
Bran-flakes
Weetabix
Porridge (on request)

Tradicional Irish breakfast
Eggs cooked to your taste
Fried-scrambled-poached or boiled
With the choice of the following
Bacon
Sausages
Tomatoes
Black & white pudding

Beked beans on toast

Pancakes served with a topping of fresh fruit

Claro está que quis experimentar de tudo, até porque fiquei instalado nesta casa duas noites de seguida e tive tempo, portanto, para isso. O pequeno-almoço irlandês é uma coisa absolutamente incrível. Para além dos ovos, estrelados ou mexidos, há ainda bacon frito e salsichas. Isto para além de feijões guisados (do género manteiga, não sei se está a ver... brancos…) em cima de uma tosta; ou uma espécie de enchido à base de sangue, que depois de curtido – não sei se pelo fumo se de que maneira – é igualmente frito; para além de tudo isto, há ainda a considerar o tomate – finalmente um vegetal – levemente cozido e finalmente passado por uma grelha de calor; e, o melhor de tudo, panquecas de que envio fotografia para apensar ao processo. Dizem-me que há, também – mas não constava no cardápio – a incontornável batata, cozinhada de uma maneira esquisita, que não tive oportunidade de degustar.
Mas voltando ao princípio, Chefe, o estranho é nunca me ter sido pedida, em circunstância nenhuma, identificação.
Começo aqui um outro parêntesis, se me permite, Chefe!
Parêntesis:
Curiosamente, quase não dei pela presença dos nossos camaradas, polícias locais, designados por estas bandas por GARDA. O nome faz lembrar os nossos guardas, não é?, mas aqui, efectivamente, significando polícia. Por curiosidade, Chefe, o plural de GARDA é GARDAI. Claro está que estamos perante a língua irlandesa ou gaélica, que até ao século XVI foi a língua oficial da Irlanda, tendo entrado depois disso em declínio, muito por culpa da Inglaterra colonialista, digo eu. Actualmente a República é bilingue.
E o chefe sabia que para se entrar na Função Pública, é necessário falar irlandês? E que os estudantes, para frequentar as instalações universitárias depois de cumprido o ciclo secundário – chamemos-lhe assim – têm de falar gaélico? Apesar disso, só cerca de onze por cento da população fala fluentemente a língua. Mas está a crescer, fruto também dos programas de rádio e televisão – vários – onde a língua falada é o irlandês. E até na toponímia, muitas informações são já dadas nas duas línguas. Nos caixotes do lixo, por exemplo, em estaque está a palavra BRUSCAR e só muito sub-repticiamente e que aparece o substantivo em inglês: litter.
Fim de parêntesis.
Mas estava a falar da ausência da polícia. É que nem apeada nem automobilizada. Nos últimos dias sim, um pouco mais. Ou porque eu estivesse mais atento, ou porque, por razões operacionais, eles passaram a estar mais visíveis.
Concluindo este item do relatório, Chefe, chamo a atenção, uma vez mais, para a dificuldade de encontrar qualquer fugitivo que escolha esta terra para se esconder.