quarta-feira, janeiro 30, 2008

histórias de camarim, 8

Ainda da mesma fonte, das memórias do actor Chaby Pinheiro:
‘’Estávamos em Viana do Castelo, nos fins de Novembro, e devíamos estrear-nos em Braga, a 2 de Dezembro; o dia 1 era perdido, porque não havia naquele tempo comboios que nos permitissem deixar de perder um dia. Nas vésperas, apareceu uma comissão de Ponte de Lima a pedir um espectáculo justamente para o dia 1.
Muito prático, diziam. Saem de Viana em carros depois do almoço, jantam lá, representam e seguem depois para Braga, onde chegam pelas seis da manhã, e podem descansar o dia todo. Assim se fez. Contrataram os carros em Viana. A Lucinda, a Lucília, o pai Simões e o Cristiano, foram de landau; o resto da companhia num char-à-bancs. O tempo estava soberbo, e a viagem foi lindíssima. Nem sequer havia frio. Eu, que seguia na boleia, tomei as rédeas alturas tantas e fui a governar o char-à-bancs até Ponte de Lima; chegámos pelas seis da tarde. Aguardava-nos a tal comissão, e embutiu-nos um daqueles banquetes do Minho, que não têm fim. Muita carne, muito doce, muitíssimos discursos, e vinho a rodos. Fomos dali representar, e o teatro, que é bonito, estava, para a época, muito bem iluminado – e cheio à cunha.
Findo o espectáculo, os cocheiros tardaram inexplicavelmente uma hora bem puxada; mas lá nos metemos nas carripanas, providos de iguarias e garrafas pela munificiente comissão. Eu ia à boleia com o João Lopes; ele de casaco à alentejana, eu com uma capa italiana sobre o fato de cena.
A noite estava estrelada, cortada com um friozinho seco.
Íamos nós atrás. Coisa de uma hora depois de estarmos em marcha, o cocheiro perguntou de chofre:
- Os patrões vêm armados?
- Vimos – respondeu de dentro o Figueiroa. - Porquê?
- Disseram-nos em Ponte de Lima que tem havido aí uns assaltos.
- E agora é que se lembra de dizer isso? Oh Chaby! Vê se mandas parar o landau.
Desatei a berrar, mas havia grande distância (tinham-nos atrasado com o pretexto da poeira). Tomei as rédeas quase à força, e consegui alcançar o landau sem dar ouvidos ao cocheiro, que lamentava o gado…
Parou tudo. O Cristiano desceu, afastou-se com o Figueiroa e comigo – e reuniu-se o conselho de guerra.
Era ponto assente a combinação de qualquer tramóia com os cocheiros; eles não tinham assistido ao espectáculo, apesar de convidados; tinham-se sumido, tinham demorado o arrear das parelhas, tinham distanciado os carros…
- E você vem armado? – perguntou-me o Cristiano.
- Trago um canivete, mas não convém que eles saibam…
Depois de muito congeminar, deliberámos prosseguir a viagem; o landau, na frente, com o João Lopes ao lado do cocheiro. Eu no meu lugar, levando na mão qualquer coisa que lembrava uma arma de fogo. Por acaso, trazia a minha chave do trinco; assestei-a agressivamente por baixo da capa, e parti – enquanto o Lopes fazia mais ou menos o mesmo, empoleirado no landau. E disse o combinado:
- Vamos para diante. As senhoras não têm medo, e nós estamos todos armados até aos dentes.
Lá seguimos.
O cocheiro ia morto de medo, e não fez senão recomendar-me cautela com a pistola. Eu respondia-lhe que se tinha medo se apeasse, e eu levaria o carro.
No começo de certa recta, iluminada em cheio pelo luar, o homenzinho desatou a gritar aos cavalos.
- Eh! Vá! Arre, malandros!
- Que é isso? – inquiri.
- É para animar o gado, porque há uma subida a vencer…
Eva de gritar, de fazer estalar o chicote, como um possesso. Nessa altura, avistei três homens com escopetas à beira da estrada… O landau já tinha passado; o char-à-bancs passou. Não se mexeram. Aquela berrata era um aviso – o sinal de que vínhamos acordados, e armados. E era de ver a cara do malandro do meu cocheiro, quando em Braga, pelas oito da manhã, ao saltar do carro lhe mostrei, a minha terrível pistola: o chavão da minha escada no Largo da Madalena.
Em Braga, todos censuraram a nossa imprudência; era ano de fome e as estradas estavam perigosíssimas. Mas a imprudência fora da amável comissão, que nos embarcara em semelhantes assados.
E o que mais nos custou foi convencer a criada da Lucília, que também viajava connosco; a desgraçada, transida de susto, deliberou fazer uma promessa, «para que se escapássemos vivos», o que era louvável; mas uma promessa que nos saía a nós do lombo: a de ir toda a companhia, a pé, de Braga, dar as graças ao Bom Jesus: Tivemos um trabalhão para remir o caso com esmolas aos pobres…’’

quinta-feira, janeiro 24, 2008

mm problema de expressão

A televisão é uma vitrina onde se exibe a emoção, a condição humana, não já na genuinidade do espontâneo, mas numa zona de um seu sucedâneo, onde a construção da emoção é realizada numa laboratório barato, despido de inteligentzia, banalizado e redundante. Quer dizer: as pessoas são apanhadas em situação de alguma desprevenção, vivem o momento com a emoção do momento, uma coisa aparentemente real, sentida, sem que se apercebam – ou sim – de que estão mais ou menos preparadas para a ocasião, por força da repetição da fórmula, tantas vezes exibida, tantas vezes papagaiada.
E, curiosamente, por falta de argumentos, de léxico, capacidade de argumentação, em inúmeros desses improvisados depoimentos, a expressão que mais se ouve é: «estou sem palavras». De uma forma mais ajuizada, mais ética ou consciente, também se ouve dizer: «não tenho palavras».
E a expressão até é, na sua génese muito interessante. Alguém, que é um falante de determinada língua, que domina a língua e o seu variado léxico, que cresceu com ela, que a usa no seu dia a dia para suprir as suas necessidades de comunicação, mas também de sobrevivência, de repente, como se tivesse sido abalroado por uma onda gigante, um tsunami emocional, fica desprevenido perante a dimensão da coisa a comentar e acha-se sem léxico para tamanho sentimento, para tão grande responsabilidade, para tanta emoção.
«Estou sem palavras…»
Ou de uma forma mais convencida, mais parva: «não há palavras»…
A expressão «estou sem palavras» foi usada, desta forma ou de uma qualquer mais elaborada, por grandes autores, acredito. Só que, com que com uma pequena diferença: antes de chegar à capitulação, o homem que a produziu, usou argumentos imensos e grandes, era um falante exímio da linguagem, e num momento, por fim, - e como é importante a expressão «por fim» aqui -, rendeu-se perante a coisa a comentar e, sobretudo, perante o seu próprio comentário. E em jeito de remate ou estocada final, qual matador de toiros com o bicho completamente subordinado à sua vontade, disparou tipo passe de peito, a muleta sobre o animal ensanguentado, «estou sem palavras», e saiu com o corpo desenhado, o queixo alto e as orelhas atentas aos aplausos.
Ora, o que assistimos momento-sim-momento-sim, é ao espectáculo da incapacidade lusa de tecer observações ao que quer que seja. E normalmente, cavalgamos a selvajaria, porque à expressão acrescenta-se sempre um ãnnnn, prrrrrrr, hummmmm, quando não mesmo um ya.
E as televisões, avisadas para esta incapacidade proeminente, procuram nestas expressões de analfabetismo galopante, o momento do seu espectáculo: o espectáculo da nossa incapacidade. Se o espectador ganha uma torradeira num concurso fatela, fica sem palavras; se lhe nasce um filho à meia-noite e um do dia um de janeiro, fica sem palavras; se o gato lhe come a língua, fica sem palavras. E neste caso, é bem feito. Mas como é que alguém há-de ficar sem palavras, se esses animais dóceis, nunca o foram, nunca existiram em semelhantes bocas?
Nunca uma expressão tão banal, porque tantas vezes repetida, valeu mais e foi retrato mais fiel, do que somos e da massa de que somos feitos.
Para expressar isso, o meu descrédito, faltam-me as palavras. Ãnnnnn, rrrrrrr, prontos!

sábado, janeiro 19, 2008

histórias de camarim, 7

Das memórias do actor Chaby Pinheiro:
‘’Uma vez – estávamos na Figueira da Foz – o hotel era perto do teatro; quase junto ao cais; devia representar-se nessa noite o D. César de Bazan; era o primeiro espectáculo. Tínhamos acabado de jantar, por sinal nada bem, e disse à criada que nos preparasse chá e alguns pratos com carnes frias para depois do teatro.
Resposta textual da criada:
- Isso não pode ser.
- Não pode ser porquê?
- Porque a casa de jantar fecha às onze horas; o chá serve-se às dez e meia.
- Mas a essa hora estamos nós a representar.
- Quero lá saber se estão a representar…
Como vêem, a criada falava de papo.
- Bem, eu vou falar com o dono do hotel.
- Ai! Vai falar com o dono do hotel; o dono do hotel não sabe mais do que eu.
- Talvez assim seja, mas vou falar com ele.
A criada – soube-o depois – tinha as suas razões para falar como dona de casa.
Dirigi-me ao hoteleiro e disse o que desejava. Respondeu-me:
- O mais que posso fazer é o seguinte: tenho o chá na mesa e as carnes frias às onze em ponto, e os senhores, durante o intervalo de um acto ao outro, como o teatro é aqui perto, vêm cá cear.
Eis a solução que o homenzinho arranjou: um passeio pelo cais da Figueira, às onze da noite, vestido de D. César de Bazan, com botas e esporas, capa e chapéu e pluma.’’

terça-feira, janeiro 08, 2008

crónica com fumo

Antes de mais nada, quero deixar bem claro que esta crónica está a ser escrita ao mesmo tempo que fumo um cigarro. Um não, dois. Um em cada mão, que é para ser mais chocante. O teclado fica cheio da cinza que não controlo e cai entre as teclas, mas que se lixe, Depois aspiro.
O pior de tudo, é que tinha deixado de fumar vai para dez anos. Há dez anos que nem uma pontinha de fumo cíclico invadia os meus alvéolos pulmonares. Nada. Alcatrão, nicles. Nem uma manchinha. (Um cigarrinho cravado aqui ou ali não conta). Mas agora, com esta febre antitabagista, deu-me para recomeçar com o vício e eis-me praticamente perdido. Acho até que, mesmo que um dia o queira, quando cair em mim, não haverá penso milagroso que me salve, nem pastilhas que tragam à minha boca o mau sabor de um cigarro desesperado em sobreviver aceso. Acho que voltei a fumar para nunca mais. Um futuro abrasivo, pois.
E tudo começou quando passavam escassos minutos da meia-noite deste primeiro dia do ano. Acho que nem ainda havia notícia do primeiro bebé a nascer e já eu estava amancebado com um cigarro. Melhor dito, já eu estava amancigarrado. Beijo para cá, chupadela para lá, o vício já me tinha regressado à boca, eu voltava a ser, como nos velhos tempos, um Hunfred Bogart do vício, um Luke Luke a caminho de um sol pôr laranja, antes de lhe terem tirado o vício dos lábios e desmamado com uma politicamente correcta palhinha.
O novo ano trouxe-nos a novidade da proibição de fumar em praticamente todos os estabelecimentos públicos.
Uma realidade que vinga por essa Europa fora, mas que se supunha que chegasse mais mansa, mais pé-ante-pé à nossa realidade nacionalzinha, a de um povo que descobriu agora que vai ter de passar a escrever como nas telenovelas brasileiras, uma coisa indescodificável para a maioria das pessoas. (Nessa coisa de língua, já me decidi: optarei pelo mirandês, língua em que esta croniqueta passará a ser estendida)
Mas volte-se ao fumanço, que é disso que fala este linguado:
Por via das dúvidas e das dificuldades de interpretação, de tal modo é criptada a lei, desde o alvorecer do ano que o português suave não pode, descansadamente, entreter os dedos, nem socializar de cigarro nos beiços, como dantes fazia.
O Ti Jaquim, com quem me iniciei nos mata-ratos e que já morreu, felizmente para ele, se fosse vivo, ia deixar de nos mostrar, aos catraios, como era capaz de, num golpe de lábios contorcionistas, revirar o cigarro e escondê-lo dentro da boca, lançar mão a um copinho de três, verter de um golpe só o dito cujo na boca onde se escondia o cigarrito, fazer um ah de satisfação, e depois fazer reaparecer o cigarro miraculosamente seco e, magicamente, puxar duas baforadas espuporadas de prazer.
Que vai ser e nós?
Eu por mim, acendo mais dois.
Que se lixe o teclado.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

chiu

Na China, os chineses sofrem muito de chinusite. Por isso, não podem ir ao chinema e são obrigados a conduzir os seus carros em estradas chinuosas.
É chato.
Chiu!

histórias de camarim 6

E já que estou com a mão na massa, aqui vai outra:
Havia no velho Teatro da Rua dos Condes uma artista muito branda, muito desanimada… mesmo empastada!... Numa comédia qualquer, estando só em cena, simulava ver um sujeito escalando um muro, e dizia: «Meu Deus! vai saltar!... lá pôs um pé… um outro… agora outro!» Um espectador das varandas gritou-lhe logo: «Então, três pés?» Ela, sem se desconcentrar, com a sua inalterável placidez e sem mudar de posição, voltou apenas a cabeça e falou: «Ah!... e o senhor nunca se enganou?!!»
Foi uma tempestade… de gargalhadas e tudo acabou sem maior protesto.

histórias de camarim 5

A fonte á a mesma das histórias que aqui apresentei no final do ano passado. Tinha umas quantas mais para vos apresentar e aqui vão as primeiras duas desta segunda leva. Ainda, como outrora, em fundo, o teatro. Não já o camarim propriamente dito, mas o palco.
Esta, a primeira a propósito de Emília das Neves, uma famosíssima actriz portuguesa.
Esta passa-se no Porto, num teatro não nomeado, e numa companhia de que a actriz era, igualmente, empresária.
E diz que, por motivo de ‘’qualquer cábula (entenda-se cábula, por erro ou engano), entendeu o público, como desforço, desfeitear cobardemente a grande artista. Além da pateada furibunda, começaram a atirar-lhe moedas de cobre, chamadas patacos. Ela, impassível à manifestação, ao ver cair as moedas, curvou-se, tomou uma entre os dedos e disse: «se é para os pobres, é pouco.» Calcule-se o efeito!... Foi uma reviravolta completa. À tremenda e injusta pateada, sucedeu-se a mais entusiástica ovação.
O sangue frio da artista venceu a injustiça da intenção.