quinta-feira, dezembro 28, 2006

o pinto de viragem da literatura lusa

Já havia, e há que tempos, a literatura dita «ligth».
Os puristas dizem, aliás, que sempre a houve, que sempre existiu.
Por qualquer razão – algumas más-línguas insinuam que a designação é, muitas vezes, usada por alguns que, porque vendem menos, cultivaram uma espécie de distinção literária, (oh a inveja, a inveja, a inveja…) relativa a outros que vendem mais que eles...
Que é «ligth», juram os eruditos e complicados, a literatura de uns quantos que facilitam os objectos literários que produzem. E chamam-lhes margaridas rebelo pinto do nosso contentamento de consumidores românticos, pimba (e cito este nome com os complexos todos que advêm do facto de nunca ter lido duas linhas desta muito vendida autora, a não ser, as referências que um académico escreveu acerca do auto-plágio que nela – sua obra – se encontra amiúde, figura de estilo utilizada para dizer que, grosso modo, a autora parece que copia postas inteiras das suas obras, e utiliza-as livremente em livros posteriores, mudando porventura a pontuação e, aqui e ali, para disfarçar a prosa, os nomes das personagens ou terras ou mesmo situações);
- E vieram, ainda coisa pior, os livros de uns quantos jornaleiros do mundo mais ou menos desportiveiro, contar as suas aventuras de figuras públicas que vivem nas paginas dos diários desportivos, como se fossem coisa escrita na primeira pessoa;
- E a seguir, porque já dava para isso, algumas personalidades do chamado jet-7, derramaram com estrondo e capas de revistas, a sua vida nos escaparates das livrarias de supermercado, como se fossem as novas aventuras da carochinha;
- E, finalmente, chegou a aventura última do mundo literário, a revolução das letras, talvez o pinto de viragem para um novo devir literário. A obra chama-se EU, CAROLINA e já está à venda... Saiu das entranhas de uma mulher que ficou conhecida por ser namorada de um dirigente futeboleiro.
Eu ainda não consegui ver o livro à venda (sob a chancela, calcule-se, da D. Quixote) mas sei que sim, que até o Procurador-geral da República o leu.
Neste país de misérias, onde ser-se namorada de presidente de futebol já dá honras de páginas de imprensa, há já espaço para que se escreva acerca da vida íntima mantida com alguém conhecido, mostrar fotografias desse tempo a esmo, mais os fac-similes de recados deixados em cima do aparador das suas vidas, onde se confessam crimes que, dizem, só o amor levou a que se cometessem.
Neste país do vale tudo, só falta o ex-namorado ofendido vir reivindicar parte da receita da venda da obra, argumentando que o foco do interesse geral é a sua pessoa, e que o livro vive das fotos onde ele posa e dos bilhetes íntimos que a sua mão escreveu.
Qual é a percentagem que merece?

domingo, dezembro 24, 2006

este natal

Na casa, uma velha mulher tomara o lugar da minha tia, uma mulher cheia de vida que me habituei a encontrar sempre que, galgados os quilómetros que nos diferenciavam, nos encontrávamos para as festas. Uma velha mulher que vestia de preto, com o cabelo branco, (outrora sempre impecavelmente arranjado), agora em desalinho, ao deus dará, e já se sabe que deus dá muito pouco, de nada valendo a esperança condicionada de qualquer futuro imperfeito.
Recebeu-me sem um beijo, sem o conhecido abraço, adiados pelo choro, pelo soluço arrancado em vómitos do peito cansado de choro convulso, pelo abanar de cabeça. E antes do beijo e do abraço, a sacramental pergunta: tens fome? E só depois disso, e de outro texto que não recordo, acalmada a tormenta do encontro, - que é sempre renovada quando chega uma pessoa de novo áquela nova vida, - é que o beijo me sobrevoou até pousar em mim, e depois as mãos, os braços, como um cansaço que cai, uma resignação, que se adivinha há-de soçobrar perante uma recordação, um papel, uma carta, uma fotografia, um vaso, uma cadeira, um par de chinelos, um pensamento clandestino.
A minha velha tia tem 92 anos acabados e fazer.
Vive sozinha numa aldeia beirã. Morrerá sozinha, creio, se não formos capazes de lhe domar a vontade se solidão, incapaz de partilhar o seu espaço com mais alguém que não o marido recém-falecido, sessenta anos de vida em comum sem filhos, um matrimónio como uma fatalidade que não se questiona, uma irmandade até, ela a mãe e ele o pai deles mesmos, autoridade e maternidade nos dois, distribuídos por entre os familiares que ajudaram a criar, mesmo os que a distância separou, longes ansiosos que se fizeram distâncias esmaecidas porque as festividades os foram acalmando.
Durante aquela primeria hora de convívio, o frenesi de sempre, portenciado ainda mais, muito para além do que lhe reconhcia como sendo gesto normal. Como sempre fazia questão, preparava uma refeição, especialmente pensada para mim. Numa travessa, perto do fogão, jaziam adormecidas três pernas de galinha. Deduzi que deveria andar por ali, algures, uma quarta perna, que as pernas deviam ser de duas galinhas, que ainda não conheço galinhas com três pernas.
E com segurança, confeccionou a refeição. Alourou batatas que acompanharam as coxas estufadas do animal, uns legumes mais e a refeição ficou completa. Preparou a mesa. Como sempre fazia quando eu a vizitava sozinho, preparou três lugares, enquanto eu, incrédulo e incapaz de a contrariar, a observava, esperando uma aberta para corrigir o gesto, mas sem saber como o fazer. Os pratos estavam já colocados em cima das toalhas individuais. Os talheres, os copos e os guardanapos já postos no sítio. Mas só quando me levantei e a abracei pelas costas, é que deu conta do engano, do engano completo, engano desde o fogão, provavelmente, engano desde o supermercado.
- Não ligues. Não ligues.
Mas eu liguei. Como é que podia não ligar?

quarta-feira, dezembro 13, 2006

coincidências

Os dias têm coisas assim, coisas destas, que fazem com que nascer e morrer sejam gestos de um mesmo acto, o primeiro e o último de um drama que, às vezes, tem uma parte apenas, uma única respiração, o acto de se nascer apenas, e que pode ser farsa ou não; e outras vezes tem cinco, cinco actos, como manda a regra das tragédias clássicas, é longo e demoramo-nos a percorrer toda a narrativa de que somos pacientes espectadores.
Não estou virado para a filosofia de pacotilha, mas acontece que, coincidência, no mesmo dia em que um português ilustre, Manoel de Oliveira, festejava os seus 98 anos de vida (nasceu em 1908, calcule-se), um chileno, Augusto Pinochet, morria vítima de complicações cardíacas, numa provecta idade, sim, mas sem que uma última marcação – para manter a terminologia teatral – se tivesse cumprido, e que consistia, precisamente, no seu julgamento à luz da lei dos homens.
É claro que os passados destes dois homens não são comparáveis, felizmente para o português, (que não é tão pouco passado, pelo contrário, porque também sendo passado – e tem passado (o passado é aquilo que mais nos enriquece, porque é memória) - é igualmente um presente cheio de força, vitalidade e luz.
Um dia destes, contaram-me jovens companheiros, na ante-estreia de um filme português de um outro realizador, («Viúva Rica Solteira Não Fica», assim se chama o filme) lá estava o Ansião realizador a testemunhar o momento. Porque estava amparado a uma bengala, e não fosse pensar-se o que não se devia, afiançou a todos que não precisava dela (bengala) para nada, mas que, como o joelho lhe estava a dar alguns problemas, ele entendia que o devia poupar o mais possível, para os muitos anos que ainda haverá de precisar dele.
Já o mesmo se não pode dizer de Pinochet.
O homem que matou Allende com a cumplicidade dos EUA, morreu sem que a justiça, como os americanos gostam de dizer, tenha cumprido o seu destino.
Ou a prova provada que a invocação da justiça, só dá jeito, em algumas circunstâncias.

terça-feira, dezembro 05, 2006

cê tê tê

«Levar a carta a Garcia», é adágio que não se cumprirá durante uns valentes dias.
Em época de férias, já se sabe, é sempre a mesma coisa. É a mesma cantiga de todas as vezes. Mas, desta vez, as razões para o não cumprimento do contratado entre aquele que envia a epístolazinha e o que tem a incumbência de a levar ao seu destinatário, independentemente de ser azul ou esverdeada, não são os mesmos do costume.
O que manda a tradição é que, apesar dos telemóveis e, principalmente, a net, terem pulverizado todos os hábitos de comunicação à distância, (eles vieram, definitivamente, alterar os hábitos ancestrais do homem, em enviar cartas e postais aos seus familiares e amigos, - em épocas precisas, festas principalmente, a verdade é que os hábitos estão a caír de desuso, e agora escreve-se cada vez menos. Pelo menos pelas vias tradicionais), continuamos a fazer uso dessa ferramenta fantástica cheia de história. Em épocas, como dizia, especiais, tais como o Natal, por exemplo, que é o tempo que se apróxima, continuamos a cumprir a tradição de escrever belos postais e enviar, com a força da nossa caligrafia mais ou menos cuidada, o calor dos nossos desejos, imensamente repetidos, de votos de felicidade. Por força dos feriados, das férias e do acréscimo do trabalho necessário em distribuir a correspondência, (a que há, e que ainda é muita), ela chega com um atrazo normal aos seus destinatários. Nada de que não estejamos habituados. E preparados, até. Por isso escrevemos antes da hora, já a pensar no que aí vem.
Mas o que vai acontecer por estes dias, (já aconteceu, aliás - A GREVE -, mas as suas repercuções práticas senti-las-emos neste futuro proximo), é mais uma manifestação de desconforto de uns quantos portugueses, perante o patrão-mais-ou-menos-estado (que é o pior que pode acontecer a um trabalhador: ter um patrão que não se sabe muito bem quem é, ou sabendo-o, sabe-o testa de ferro de uma outra organização que, por conforto de uns quantos aparelhos instalados, não diz ser, evita mesmo sê-lo, desdiz-se, nega-se, e o galo já vai em meia dúzia de cócórózadas, e o dia ainda está longe de terminar, não é Pedro?).
Os trabalhadores dos CTT estiveram em greve e nesta altura, há a habitual discussão do nível de adesão, sendo que os sindicatos juram que foi na ordem dos setenta por cento, e a entidade patronal afiança (eu seja ceguinho, ouve-se) que não passou os vinte e oito.
O que se sabe (1), é que vai ser um trinta e um para receber os postalinhos a que temos direito;
O que se sabe (2), é que os trabalhadores dos correios de portugal são mais uma força que vem publicamente manifestar o seu desconforto perante o estado a que as coisas estão a chegar, na vida portuguesa.
Não ver isto, é não ver um boi à frente dos olhos.
Ou melhor: é não ver um envelope do tamanho de portugal, à procura de uma caixa postal que nunca mais aparece. Uma carta portuguesa, com certeza, que, encarecidamente, pede uma carta de resposta.
Mas essa carta (à atenção do Estado Português) não deve ser escrita antes de ser lida a primeira. Sob pena de falar de alhos, quando o que está em causa, são bogalhos.