domingo, dezembro 24, 2006

este natal

Na casa, uma velha mulher tomara o lugar da minha tia, uma mulher cheia de vida que me habituei a encontrar sempre que, galgados os quilómetros que nos diferenciavam, nos encontrávamos para as festas. Uma velha mulher que vestia de preto, com o cabelo branco, (outrora sempre impecavelmente arranjado), agora em desalinho, ao deus dará, e já se sabe que deus dá muito pouco, de nada valendo a esperança condicionada de qualquer futuro imperfeito.
Recebeu-me sem um beijo, sem o conhecido abraço, adiados pelo choro, pelo soluço arrancado em vómitos do peito cansado de choro convulso, pelo abanar de cabeça. E antes do beijo e do abraço, a sacramental pergunta: tens fome? E só depois disso, e de outro texto que não recordo, acalmada a tormenta do encontro, - que é sempre renovada quando chega uma pessoa de novo áquela nova vida, - é que o beijo me sobrevoou até pousar em mim, e depois as mãos, os braços, como um cansaço que cai, uma resignação, que se adivinha há-de soçobrar perante uma recordação, um papel, uma carta, uma fotografia, um vaso, uma cadeira, um par de chinelos, um pensamento clandestino.
A minha velha tia tem 92 anos acabados e fazer.
Vive sozinha numa aldeia beirã. Morrerá sozinha, creio, se não formos capazes de lhe domar a vontade se solidão, incapaz de partilhar o seu espaço com mais alguém que não o marido recém-falecido, sessenta anos de vida em comum sem filhos, um matrimónio como uma fatalidade que não se questiona, uma irmandade até, ela a mãe e ele o pai deles mesmos, autoridade e maternidade nos dois, distribuídos por entre os familiares que ajudaram a criar, mesmo os que a distância separou, longes ansiosos que se fizeram distâncias esmaecidas porque as festividades os foram acalmando.
Durante aquela primeria hora de convívio, o frenesi de sempre, portenciado ainda mais, muito para além do que lhe reconhcia como sendo gesto normal. Como sempre fazia questão, preparava uma refeição, especialmente pensada para mim. Numa travessa, perto do fogão, jaziam adormecidas três pernas de galinha. Deduzi que deveria andar por ali, algures, uma quarta perna, que as pernas deviam ser de duas galinhas, que ainda não conheço galinhas com três pernas.
E com segurança, confeccionou a refeição. Alourou batatas que acompanharam as coxas estufadas do animal, uns legumes mais e a refeição ficou completa. Preparou a mesa. Como sempre fazia quando eu a vizitava sozinho, preparou três lugares, enquanto eu, incrédulo e incapaz de a contrariar, a observava, esperando uma aberta para corrigir o gesto, mas sem saber como o fazer. Os pratos estavam já colocados em cima das toalhas individuais. Os talheres, os copos e os guardanapos já postos no sítio. Mas só quando me levantei e a abracei pelas costas, é que deu conta do engano, do engano completo, engano desde o fogão, provavelmente, engano desde o supermercado.
- Não ligues. Não ligues.
Mas eu liguei. Como é que podia não ligar?