na passagem de um ano para o outro
O
ritual é o de sempre, que de tão velho, já cansa. E, coisa estranha e
contraditória, por ser tão ‘mais do mesmo’, é uma coisa que se renova em todos
os anos, que se reserva como na boa culinária, para se celebrar na hora certa:
a poucos segundos da meia noite de todos os dias trinta e um de dezembro,
milhares/milhões de pessoas celebram esses últimos segundos e os segundos que
dão início a um outro ciclo de contagem de tempo, isto é, um outro ano, como se
alguma coisa de substancial mudasse nesses momentos contraídos e, passasse a
ser, matéria festejável.
As
coisas que se fazem nesses momentos, são do mais estranho que se pode imaginar
fazer. Só alguns exemplos para atentarmos à estranheza: subir para uma cadeira
e agitar dinheiro, ou pelo menos com dinheiro no bolso, mesmo que haja gente
que prefira ter dinheiro enfiado nos sapatos; comer doze uvas-passa, uma-a-uma,
à medida que os últimos doze segundos do ano se escoam; atirar tachos velhos
pela janela fora, mesmo que em tempo de crise apenas se bata neles com os
respectivos testos; estrear roupa interior, íntima, e de cor preferencialmente
azul; estoirar as rolhas do espumante (sim, que o champagne está inacessível ao
comum dos mortais) no momento da viragem e emborcá-lo sem parcimónia; fazer
coincidir a esse estoiro popular o ribombar de um festival de fogo de
artifício, tão longo quanto a profundidade das finanças das autarquias que os
encomendam, et por cause, os pagam,
conseguem; promover uma maratona de S. Silvestre e assistir, enregelados, ao
esforço dos atletas quase em hipotermia; assistir ao encerramento de um
programa televisivo, em que várias pessoas voluntariamente fechadas num sítio
qualquersão, finalmente, libertadas e regressam ao anonimato; mergulhar nas
águas geladas do Atlântico como se estivéssemos no Brasil... e por aí fora, que
estes são apenas alguns dos pequenos-grandes gestos que todos os anos repetimos
com aparente agrado.
Para
mim, que substituí o cabrito na primeira refeição do ano por um valente robalo
grelhado com legumes, querendo nessa mudança sinalizar qualquer coisa que está
entre o desejo disso mesmo, mudança, parece-me tudo muito estranho.
Sou
pelo Natal, uma quadra da família mais íntima, contra a ideia do reveillon, uma
coisa orgiastica e mundana; sou pela Páscoa, quadra da família mais ampla,
contra outra ideia qualquer mais massificada. Mas sempre pelo alegre e fraterno
convívio.
Outra
das tradições muito cultivadas, são as mensagens de Natal e Ano Novo do senhor
Presidente da República.
E
isso lembra-me – ora, aqui está uma coisa de que gosto, excepcionalmente, este
ano - que assistimos às últimas mensagens de Cavaco, na condição – claro está -
de Presidente da República.
Destes
dois mandatos, pouco ou nada ficará, nem o olhar embevecido com que mirou a
felicidade e o sorriso das vacas, nem as mãos cheias de vacuidade com que
simulava gestos que, de algum modo, coindidiam com o discurso.
Nada.
Nem isso. Nem as conchas das mãos vazias e artificiais.
A
da rainha santa Isabel, a mão, essa poderá ser vista, trezentos anos depois da
morte, no convento de santa clara a velha em Coimbra.
Pois,
mas Cavaco não é a rainha Isabel, e o carro com que foi fazer a rodagem à
figueira da Foz, não é o regaço da Santa cheio de pão aos pobres. Cavaco sempre
viajou na autoestrada das rosas, nunca no caminho do pão.
Dele
não restará mais que uma vaga e triste lembrança, ao passo que a mão da santa
pode ser vista em Julho, em Coimbra. De Cavaco, em Julho, só devem restar
recordações tristes, que nunca chegarão ao altar do povo.
É que Cavaco,
nunca viu para lá de Coimbra B.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home