sexta-feira, fevereiro 12, 2016

na passagem de um ano para o outro

O ritual é o de sempre, que de tão velho, já cansa. E, coisa estranha e contraditória, por ser tão ‘mais do mesmo’, é uma coisa que se renova em todos os anos, que se reserva como na boa culinária, para se celebrar na hora certa: a poucos segundos da meia noite de todos os dias trinta e um de dezembro, milhares/milhões de pessoas celebram esses últimos segundos e os segundos que dão início a um outro ciclo de contagem de tempo, isto é, um outro ano, como se alguma coisa de substancial mudasse nesses momentos contraídos e, passasse a ser, matéria festejável.
As coisas que se fazem nesses momentos, são do mais estranho que se pode imaginar fazer. Só alguns exemplos para atentarmos à estranheza: subir para uma cadeira e agitar dinheiro, ou pelo menos com dinheiro no bolso, mesmo que haja gente que prefira ter dinheiro enfiado nos sapatos; comer doze uvas-passa, uma-a-uma, à medida que os últimos doze segundos do ano se escoam; atirar tachos velhos pela janela fora, mesmo que em tempo de crise apenas se bata neles com os respectivos testos; estrear roupa interior, íntima, e de cor preferencialmente azul; estoirar as rolhas do espumante (sim, que o champagne está inacessível ao comum dos mortais) no momento da viragem e emborcá-lo sem parcimónia; fazer coincidir a esse estoiro popular o ribombar de um festival de fogo de artifício, tão longo quanto a profundidade das finanças das autarquias que os encomendam, et por cause, os pagam, conseguem; promover uma maratona de S. Silvestre e assistir, enregelados, ao esforço dos atletas quase em hipotermia; assistir ao encerramento de um programa televisivo, em que várias pessoas voluntariamente fechadas num sítio qualquersão, finalmente, libertadas e regressam ao anonimato; mergulhar nas águas geladas do Atlântico como se estivéssemos no Brasil... e por aí fora, que estes são apenas alguns dos pequenos-grandes gestos que todos os anos repetimos com aparente agrado.
Para mim, que substituí o cabrito na primeira refeição do ano por um valente robalo grelhado com legumes, querendo nessa mudança sinalizar qualquer coisa que está entre o desejo disso mesmo, mudança, parece-me tudo muito estranho.
Sou pelo Natal, uma quadra da família mais íntima, contra a ideia do reveillon, uma coisa orgiastica e mundana; sou pela Páscoa, quadra da família mais ampla, contra outra ideia qualquer mais massificada. Mas sempre pelo alegre e fraterno convívio.
Outra das tradições muito cultivadas, são as mensagens de Natal e Ano Novo do senhor Presidente da República.
E isso lembra-me – ora, aqui está uma coisa de que gosto, excepcionalmente, este ano - que assistimos às últimas mensagens de Cavaco, na condição – claro está - de Presidente da República.
Destes dois mandatos, pouco ou nada ficará, nem o olhar embevecido com que mirou a felicidade e o sorriso das vacas, nem as mãos cheias de vacuidade com que simulava gestos que, de algum modo, coindidiam com o discurso.
Nada. Nem isso. Nem as conchas das mãos vazias e artificiais.
A da rainha santa Isabel, a mão, essa poderá ser vista, trezentos anos depois da morte, no convento de santa clara a velha em Coimbra.
Pois, mas Cavaco não é a rainha Isabel, e o carro com que foi fazer a rodagem à figueira da Foz, não é o regaço da Santa cheio de pão aos pobres. Cavaco sempre viajou na autoestrada das rosas, nunca no caminho do pão.
Dele não restará mais que uma vaga e triste lembrança, ao passo que a mão da santa pode ser vista em Julho, em Coimbra. De Cavaco, em Julho, só devem restar recordações tristes, que nunca chegarão ao altar do povo.

É que Cavaco, nunca viu para lá de Coimbra B.