a esmola e a sensualidade
A moda dos calendários sensuais com objectivos beneméritos, parece ter pegado de estaca e está para durar.
Na Universidade do Minho, que se saiba, há pelo menos dois. Um grupo de estudantes e judocas
publicou um, para socorrer os colegas que estão em dificuldade para prosseguir os estudos
por falta de pagamento de propinas
e etc; e um grupo de tocadores de bombos (e de bombas!) publicou um outro, para
ajudar a Cruz Vermelha.
O altruísmo ainda é um valor a reter e a praticar, pode
concluir-se. Bem haja aos meninos e às meninas que se despiram por uma boa causa.
No caso, por duas boas causas.
Porém - e é terrível quando há poréns metidos na história, sobretudo desta natureza - destas duas inciiativas. Importa porém pensar um bocadinho: nos gestos e suas
consequências,
e nas causas e suas razões.
Pensemos primeiro que tudo, nas causas.
A pobreza está enraizada na sociedade portuguesa, isso é coisa certa. Nestes tempos mais recentes ela
voltou a mostrar os dentes malvados e tonou-se coisa incontornável, tal a dimensão da sua dilatada cintura. Já houve tempos, como agora, em que ela roía tudo e todos, pouca gente escapava, e dos
mais velhos de entre nós, sobram
as histórias
(terríveis) de tantos miseráveis, porque tocam naquilo que de mais
essencial os homens têm,
ou deviam ter, e que é a
sua dignidade. E estou a referir-me, às histórias que nos chegam dos anos quarenta,
cinquenta e sessenta do século
passado, quando a emigração
atingiu picos incríveis
e Paris, só
para falar de um só sítio, passou a ser a cidade com mais população portuguesa residente, com mais de um milhão de portugueses, batendo mesmo Lisboa,
dizia-se.
Depois, com o vinte e cinco de Abril, alguma
coisa mudou. Não
tanta e tão
radicalmente como muitos de nos gostaríamos que tivesse sido, mas pelo menos muita da
pobreza foi amenizada, reconvertida, suavizada.
De há meia dúzia de anos para cá (oito? dez?) as coisas voltaram a descambar.
Os valores éticos,
que se foram alterando com a mudança
de paradigma, atingiram fundos inconcebíveis e a pobreza voltou, fulminante, a tomar
conta da nossa vida.
Regressaram as histórias inconcebíveis não apenas da pobreza, mas da indignidade, que é ainda pior que a própria pobreza. A fome volta a estar na ordem do
dia e os casos publicitados sucedem-se por todo o lado. Para piorar a
fotografia, mais graves que estes casos, os que nos dão conta da pobreza escondida, disfarçada, maquilhada. E que atinge quem nós nem sequer imaginamos. O que é facto é que, pelas mais disparatadas razões, o Estado volta a não ajudar os cidadãos, abandonando-os à sorte da esmola, tal como acontecia há anos.
Voltam a proliferar as organizações que substituem o estado do apoio à pessoa humana, e também, as humilhações consequentes. Voltam também, obviamente, fruto da extrema fragilidade
dos cidadãos,
um grupo de gente sem excrupulos, a beneficiar com a pobreza primeiro, e com o
desejo de ajuda, depois. A verdade é
que o homem é o
primeiro e o principal inimigo do homem. Quanto mais próximos, mais cruéis.
E depois chegam estas iniciativas altruístas, de gente que se organiza e, olhando à sua volta, decide ajudar da forma que tem
mais à mão. E qual é essa forma? A esmola. E nós vamos dando, vamos aconchegando a nossa
consciência com estes pequenos
contributos, em vez de fazer alguma coisa para mudar o paradigma. Em vez de um
calendário, compramos dois; em
vez de um quilo de açúcar
compramos dois, mas no mesmo supermercado que pertence aos mesmos donos e que
vai enchendo os bolsos e se vai governando.
Consta que na Dinamarca, um país social democrata, não há pobres. O estado assume as necessidades básicas dos seus cidadadãos. Mas isso, digo eu, é porque tem a viver nesse chão, dinamarqueses. Se tivesse portugueses, eu
queria ver... É
certo que o estado cobra cerca de sessenta por cento dos proveitos dos
trabalhores, em impostos. Que, como cá, são impostos. Mas os dinamarqueses convivem bem
com isso. Nós
aqui, miseráveis,
pagamos montantes semelhantes, e continuamos a viver miseravelmente.
Quanto aos calendários...
Os rapazes e as raparigas da UM, como a
generalidade dos voluntários
empenhados em descobrir forma de fazer esmola, têm mesmo que se despir? Só despidos, em calendários mais ou menos sensuais, se ajuda o próximo?
Não
sei. Não sei...
Parece que a receita bruta da edição inteira de um dos calendários, dá qualquer coisa como mil e seiscentos euros.
Muito pouco para ajudar tanta gente necessitada, não vos parece?
Melhor mesmo que fazer fotografias meio
despidos, mas escondendo tudo o que pode comprometer as jovens reputações, seria vender a roupa despida, de preferência coisa de marca e cara, e somar essa
receita aos proveitos calendariais. Aí estaríamos mesmo no território da sublimação, como quando se dizia que fulano de tal, tão amigo que era do próximo, tirava a própria camisa para dar aos pobres.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home