hoje às 21h30 na Casa das Artes de Famalicão - SETE PECADOS MORTAIS e MAHAGONNY, duas óperas pela orquestra e solistas da ESMAE
da viagem…
da história… e das
histórias…
das personagens e dos
interpretes…
Uma pouca sagrada família: uma mãe (o baixo Jorge
Castro), um pai? (o barítono Sérgio Ramos) e dois filhos (os tenores Almeno
Gonçalves e João Terleira).
Ana (duas metades de uma só… a meio-soprano Ana
Santos e a soprano-bailarina Ana Pousa) despede-se da família – reunida à volta
da mesa - em silêncio.
A orquestra arranca com o Prólogo.
Ana parte (com a sua metade, irmã de si mesma) com
a mala-fardo-fado da viagem. E, com ela, as tantas irmãs que partem também, e
nós com elas. Canta-nos o objetivo da viagem: viajarão – ela e a sua
irmã-metade… ela própria, portanto, personagem única mas divisível, consigo
mesma… - durante sete anos, por sete cidades. Ganhará dinheiro com o suor do
seu rosto de artista em desespero, que enviará para a família. A emigração já
presente. A necessidade de partir, mas não já (crê-se) a partir da necessidade
da sobrevivência, mas do desejo de riqueza, de ostentação, de fama, de
celebridade.
Ana sai pela direita alta: primeiro a sua metade
corajosa; a seguir a sua metade tradicional.
Na canção da família, A Preguiça, a mãe serve
comida na mesa despida. Não há instrumentos (pratos, garfos, copos…). Não há
mais mobiliário para além da mesa. Finge-se que se come, comendo. A pequena
burguesia, capital do fingimento.
É-se, estando: não se está, sendo. Contradições de classe. O burgo
fabricando as suas personagens de referência. O capitalismo a gatinhar os
primeiros passos andarilhos.
No momento seguinte, Ana (a soprano Gabriela Braga)
regressa da direita alta para cantar O Orgulho, o pecado associado a Memphis
(quem souber que me explique). A família está-continua no seu lugar de família:
a sala e a mesa burguesa. Ana 2 (a bailarina) invade esse território (que é um
outro território, um lugar para onde a família lança Ana, a emigrante) e usa-o,
bem como aos adereços da familia, como o seu palco onde se espectaculariza: os
lápis, o lenço, o jornal, o cachimbo e a mesa – ela mesma, convenção familiar -
são palco e adereços para o espectáculo. Como se no mesmíssimo espaço,
co-habitassem territórios distintos e distantes.
No momento complementar deste momento, a família
lamenta o comportamento anormal de Ana que não envia dinheiro suficiente para
as expectativas da família. Este é também um momento que revela burguesmente a
sua disfuncionalidade.
Ana (a soprano Sofia Pinto) sente, também ela, os
escolhos, as tentações reveladas, mas entende – na canção seguinte: A Ira (Los
Angeles) – que os obstáculos estão ultrapassados. As coisas avançam. Ana entra
num filme pornográfico e a sua carreira vai de vento em popa. No meio das
filmagens, assassina o parceiro (o baixo Luís Neiva, em silêncio… jogamos aqui
duas das didascálias de Brecht). Ana (nas outras Anas presentes: bando e
matilha) rouba-o. Ana consola a irmã que não percebe, ou não tem consciência do
que fez.
A família, na canção que se segue, A Gula
(Filadélfia), fala de Ana como sendo uma rapariga gulosa, que deve
controlar-se. Caso contrário, porá em risco o plano de se tornar uma grande
bailarina capaz de vencer nos principais palcos da América. Na carta que a mãe
recebe (o barítono André Carvalho é o mordomo silencioso desta cena e é ele
quem leva a carta, não a Garcia, mas à mãe) a família faz todo o tipo de
considerações a respeito deste pecado da filha. Cantam, enquanto o mordomo
chega com as mais diversas coisas para enfartar a mesa da família (toalha,
tralha burguesa, serviço de loiça de Limoges, ou Vista Alegre, ou Valadares,
etc. etc., e até, hélas, um candelabro com velas).
Instalada a mesa, um Homem (o tenor Carlos Meireles
figura) acende o candelabro. Ana 2 invade este espaço (o espaço do seu pecado),
fixada na comida, pois, mas também no homem, objeto da sua paixão. Contudo, a
irmã (a soprano Mariana Fabião), na canção da Luxúria (Boston é a cidade
associada), é um obstáculo. Ana II ama o homem que acendeu as velas do
candelabro e, nesse gesto, as do seu coração e dá-lhe tudo o que pode para
comprar o seu amor, mas ele ama Ana I e entrega-lhe tudo o que tem para comprar
o seu amor. Um triângulo impossível, com a Luxúria presente, que termina no
suicídio (metaforizado) do homem,
infernizado nesta desconformidade.
A família fala da avareza enquanto Ana se exibe em
Baltimore.
De lá a S. Francisco (capital da Inveja), é um
passo. Ana (a soprano Sandra Azevedo) prepara-se para regressar. O círculo
fecha-se. A digressiva viagem de sete anos está prestes a terminar. As Anas
(matilha e bando) regressam circunspectas. E preparam o Epílogo.
Ana regressa a casa sete anos depois (mas ‘seis
teria sido muito melhor’, disse logo no início da obra) e à mesa está sentada a
família, mas não há uma cadeira para si. A mesa é enorme e opulente, na relação
com as pequenas cadeiras onde se sentam. Toca à porta de casa, limpa e
desinfetada dos sete pecados sofridos e das sete cidades percorridos, sacudido
o pó dos sapatos de pontas em cima dos quais se exibiu mundo fora, e a família,
perante aquela chegada, volta-lhe as costas. A deformação não é aceitável numa
família burguesa onde a imagem é parte importante da sua vitalidade enquanto
grupo, mesmo quando essa deformação é plataforma para se chegar a um esplendor
que, de outro modo, seria território impossível.
A consciência chega por fim. Ana foge. De si, desse
passado, da diáspora e dessa memória de guerra sobrevivente. Ela, despojo e
troféu. Lixo e luxo.
A cena, por um momento, fica vazia, apenas
preenchida pela descida de uma cortina flamejante.
Mas já os trabalhadores de um bar local,
pós-convocatória dos pecados acabados de experimentar por Ana e antecipação da
cidade que se quer alcançar, transformam o espaço da metáfora em espaço de
pecado. Um piano chega. Um microfone é montado. E a artista de cabaret,
trôpega, sofrida, antiga, irrompe. É a mulher do poema ‘vou fazer o papel de
uma bêbeda que vende os filhos em paris...’? E canta. En français. Sobre os cadáveres dos pequenos abortos que flutuam no
Sena. E outras desconformidades. Em estilo feérico, desengajado, anacrónico.
Inconscientemente feliz? E acaba. E, acabada a função, como qualquer Ana que se
preza milhares de anos depois, parte, cumprido o seu papel, para um outro palco
qualquer.
Em bastidores, mas visíveis, tudo se arrumou para a
viagem a um El Dourado prometido.
E ei-los que chegam. Os homens e as mulheres da
viagem seguinte.
Os homens cruzam-se - sem se cruzarem - com as
mulheres, todos a caminho de uma decisão.
Na primeira canção, os homens (Carlos Meireles +
André Carvalho + Luis Neiva + João Terleira) estão cansados, sujos, regressando
de um mês de trabalho, mas cheios de dinheiro. Receberam o seu salário e
projetam uma ida até um lugar de jogo, de mulheres e de álcool. Uma viagem sem
regresso, porque não é planeado o momento seguinte. (Quando se vive sem
esperança, sem futuro, interessa apenas o desespero do presente?)
Na segunda canção, as mulheres preparam-se para ir
ganhar dinheiro num sítio onde se ganha dinheiro, onde homens procuram
mulheres, jogo e álcool. As mulheres preparam-se, vestem-se, pintam-se,
arrumam-se. Uma, a mais entendida (Ana Atalaia + Ana Pousa), ensina as outras
(todas, mas principalmente as sopranos Liliana Sousa e Lúcia Ribeiro) o jogo da
sedução, mesmo que seja um jogo de faz-de-conta no sítio onde ela não é
necessária.
No terceiro momento, os homes e as mulheres
encontram-se em Mahagonny. A cortina vermelha que desceu no final dos Sete
Pecados, sinalizando o cabaret do intermezzo
e a Mahagonny que se vai procurar a seguir, subiu.
Elas seduzem os homens, sacam-lhes o salário, o
dinheiro. Há alcoól, há jogo. Os homens ficam sem nada, sem futuro e sem
presente, e sem o salário.
Em Mahagonny todos os negócios possíveis já
aconteceram. O dinheiro dos homens já acabou. O whisky acabou. Na ressaca de um
momento procurado e já gasto, surge a possibilidade de uma outra cidade onde as
coisas estão vibrantes, como já estiveram em Mahagonny, onde ainda há
oportunidade de continuar. Onde se pode cumprir o desejo de qualquer coisa.
Mas os jornais já falam de uma calamidade qualquer:
um tremor de terra, que deitou a nova cidade da oportunidade a perder.
A depressão instala-se. Todos são reféns da crise,
da troika ausente. Uns e outras são, agora, gente desesperançada. Eles porque
sem capital; elas porque sem sonho de se reencontrarem com os capitalistas.
Mas eis senão quando, neste ambiente decadente,
surge Deus. Primeiro no whisky; depois em todo o lado. Até na excrescência que
a criança retira do nariz com estrondo. Mas surgem tb as pequenas obcessões.
Cada um com a sua. A obsessão da que quer ver o mundo desinfetado; a da que
procura a tontura do desequilíbrio para sonhar; a da que procura a vertigem do
abismo na beira do fosso; as das que querem por um momento a luz do microfone;
É tempo para o primado da individualidade.
Este?
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