quarta-feira, dezembro 21, 2011

O Natal está aí, mas eu quero, nesta hora, lembrar Cesária Évora, e recordar o momento, para mim marcante, em que conheci a artista.

Ficou estabelecido que, se Cesária vinha ao Teatro circo, alguém da rádio universitária estaria por lá a entrevistá-la. Queriamos muito que ela fosse ao estúdio, mas o horário, diziam-nos, apertava. E depois de muitas negociações telefonicas, combinei com a produção da cantora, que ela se disponibilizaria para uma conversa, no camarim, depois da preparação do som, no final da tarde.

Na véspera da nossa conversa, vi, estarrecido, num programa de televisão, a mulher das mornas e coladeiras dar com os pés a Júlio Isidro em plena RTP, num programa musical, em directo. Terá pensado: cantar sim, mas falar é que nem pensar. Cantou, pois e, no fim, Júlio Isidro tentou umas quantas perguntas que Cesária, por qualquer razão que nunca averiguei, nem se dignou responder.

Por isso, quando foi o dia do espectáculo, em braga, tal como combinado, lá fui para o Teatro Circo com o rabinho entre as pernas ( entre a admiração e o medo da recusa), falar com a mulher. Durante o teste de som, ela foi-me apresentada, ou eu apresentado a ela, que quase nem me ligou, absorta que estava na prepação do espctáculo.

Lembro-me que a coisa deve ter demorado mais do que o previsto e o tempo, que já estava curto, deve ter encurtado ainda mais. Eu já antevia uma recusa de última hora, alertado até pelos sinais que ia recebendo do manager.

Acabada a sessão da tarde, a diva dos pés descalços pediu-me desculpa, mas que não podia perder mais tempo, que não podia receber-me no camarim como combinado. Perante o meu ar de tristeza, só pode ser essa a razão, disse-me que entrasse com ela no carro, que conversaríamos ali mesmo. Pois claro que sim, disse eu, e entrámos. O carro estava estacionado em frente ao teatro. E a mulher que não tinha tempo, que dera uma tampa violentíssima ao celebradíssimo Júlio Isidro (vá lá saber-se porquê) recostou-se no banco e ali esteve, uns quarenta e cinco minutos, pelo menos, conversando sobre tudo e sobre nada, sobre a infância em Cabo Verde, sobre os amores, sobre os desamores, sobre a fama, sobre a França que a deu a conhecer ao mundo, numa conversa sem tabus. Conversava pelos cotovelos, enquanto batia com as mãos nas pernas, fazendo ritmos a compasso ou a descompasso com o discurso.

O manager veio dizer que era imperioso fazer avançar o carro e, ela, nada. Numa das vezes perguntou-lhe quantos anos tinha o wiskyie que, contratualmente, lhe tinham posto no camarim. Ter-lhe-à respondido o manager que 8 anos ou coisa que o valha e ela recusando, ‘que não era pedófila’, que wiskie tinha que ter mais que não sei quantos, já não me recordo extacamente quantos. E ali ficámos mais um grande bocado, enquanto o manager zelava pelo cumprimento do contrato.

E eu juro que nessa noite, num dos momentos do espectáculo, a grande cantora me brindou com um trago generoso, da garrafa de que ia bebericando. Trago generoso e conversa ganerosa.

Nunca mais a esqueci. Como esquecê-la?

Recordo-a hoje, assim publicamente, neste espaço de crónica, para celebrar a mulher que tinha tristeza na voz, e que nos deixou mais tristes com o seu desaparecimento.

Tão curto este encontro, mas tão marcante.

‘Sôdade, sôdade’ daquela conversa no banco detrás de um carro, em frente ao teatro circo, com a fantástica artista Cesária Évora.