domingo, maio 04, 2014

quarenta anos

"Há qualquer coisa no ar", disse-me uma amiga com quem me cruzei um dia destes, já com o vinte e cinco de abril cumprido, cravo a ameaçar murchidão eminente, aos tombos na lapela.
E eu, preocupado com os pólens e coisas que tais, a olhar para o céu com ar de metereologista desleixado em dia de folga, a pensar que estava lixado, ao mesmo tempo que assoava o nariz ainda com mais força, de modo a que nenhuma partícula de renite me pudesse assaltar, expulsando de lá qualquer invasor mais afoito.
"Sente-se", reforçou ela.
"Alguma coisa está para acontecer", profetizou por fim.
Ah, está a referir-se ao vinte e cinco de abril, conclui por fim. Alguma coisa está para acontecer como há quarenta anos, pensei...
Dizem-me que naqueles tempos, também qualquer coisa se sentia estar para acontecer. Qualquer coisa que o 16 de março antecipara, uma confusão dos diabos.
E eu pensei no quão bom que seria se acontecesse mesmo qualquer coisa, para além das comemorações.
Que ainda assim, este ano foram muitas. E bastante mais significativas do que em anos anteriores.
Este ano, por ser esta data redonda, pois claro, mas também porque nunca estivemos tão enrascados. É verdade que só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja...
Tanto, que as comemorações ainda não terminaram. Porque a trovoada ameaça estar para ficar.
Eu por mim falo, dei por mim a festejar triplamente, mas triplamente porque a festejar três vezes e de três maneiras diferentes. Uma delas já se cumpriu, e que bom que foi, está festejada, em Leiria e em Estarreja, integrado no elenco de A NOITE, a primeira peça de José Saramago. Uma peça que tive oportunidade de conhecer praticando-a, que é a melhor maneira de conhecer alguma coisa, integrado nos quadros da Rádio Universitária do Minho, numa destas madrugadas comemorativas, data igualmente arredondada pela pedra do tempo. Para o efeito, pedimos a Saramago que nos deixasse usar a peça que ele escrevera para uma encomenda de Luzia Maria Martins. E que nos deixasse fracciona-lá, parti-la em pedacinhos, pequenos episódios como se de uma novela se tratasse. E prometemos mantê-la integral e emiti-la durante uma noite inteira, naquela precisa noite a que a peça se refere, acompanhando cronologicamente os episódios, como se eles estivessem a acontecer outra vez. Uma espécie de guerra dos mundos, mas sem guerra e circunscritos a este pequenino mundo que é o nosso...
E ele, no canto do sim, dobrou.
E agora, volvidos todos estes anos, regressei à mesma peça, agora mostrada canonicamente em várias salas de teatro do país. Um vinte e cinco de abril que reviverei mais vezes, graças a Saramago.
Comemorarei também o vinte e cinco de abril esta noite, no salão medieval do Largo do Paço, lado a lado com o excelente Luis Lipa (o espectáculo começa às vinte e uma e trinta, ainda podem ir), cantando uma série de canções muito pouco revolucionárias... Nós os dois, entre muitos outros, claro; é assim a modos que uma revolução, mas sem que se fale nela...
E comemorarei o vinte e cinco de abril, e o primeiro de maio, já agora, no dia 5 de maio, no Coliseu do Porto, num concerto promenade patrocinado pela FAP, Federação Académica do Porto, ao lado do maestro António Saiote, e da orquestra sinfónica da ESMAE.
E, se calhar, também por isso, sinto que alguma coisa está para acontecer, como profetizava a minha amiga um dia destes.
Só espero que não seja um golpe de Kaulza de Arriaga, ou seja, um golpe ainda mais à direita, daquela gente que acha que Coelho está a perder uma oportunidade história de, com o medo devidamente instalado, recolocar o país no sítio de onde nunca devia ter saído: naquela escura e imensa noite, imediatamente antes de Salgueiro Maia se ter feito à estrada e ter acendido a luz neste país.
Alguma coisa está para acontecer. Sente-se.

Pois como diz a canção, "que seja agora".