texto para intervenção pública no dia 1 de março, em braga
Este país está triste.
Vai-se esvaziando a pouco a pouco como
bola furada e, um dia destes, quando dermos por ela, nem para sermos chutados
servimos.
Está cinzento, como de certo os mais
antigos se lembrarão de como este país era, nos antípodas da coisa garrida.
Está anestesiado.
E este estado anestésico é uma coisa
continuada, que se prolonga, que vem desde os tempos (é assim que eu penso…
Certamente mal, mas pelo menos foi quando tive uma mais clara noção disso…) em
que Guterres esteve, por uma data de anos, primeiro-ministro. Com aquele estilo
de picareta verborreante, levou-nos à certa, fracturou-nos o crânio com tantas
palavras, não nos deu tempo para respirar, fez as perguntas e deu as respostas
e só quando tropeçou na pista da língua, e esse tropeção o obrigou a sofregar
os animais da fala, enredado na sua própria armadilha aritmética, é que
compreendemos o vazio que existia para lá do seu discurso, só ar e, com a melhor
vontade, boas intenções milicianamente cristãs.
Desde Guterres que sinto que somos um
povo anestesiado.
Depois dele, muitos outros (tantos) nos
domaram a vontade e o entusiasmo, nos adormeçam a éter sobre a marquesa e,
enfim sedados, a nossa vida tem sido isto: baldes de sono injectado na veia da
vida, da dignidade, da esperança, da humanidade.
Uma após uma, todas as pequenas vitórias
que levaram dezenas, centenas de anos a conquistar, desmoronam-se como penteado
de mulher idosa em dia de ventania. Estamos a ser levados pela intempérie que
sobre nós se abateu. Não há guarda chuva que nos mantenha secos, nem saco de
areia que nos resguarde da onda. Vivemos paredes meias com o canhão da Nazaré.
Ou nem isso, porque aqui, a natureza não tem graça, é coisa foto-montada, de
revista cor-de-rosa onde se adormecem os olhos de mulher doméstica-domesticada.
Os sinais são tantos e tão desedificantes
que, seja por pudor ou por inépcia, nem esforço faço para os enunciar, mesmo
que a título meramente ilustrativo. Basta abrir as páginas dos jornais todos os
dias e, ainda que a informação esteja condicionada por valores que já não são
os da liberdade e os da independência, não temos como não ver.
No que à arte e à cultura diz respeito –
mais, ainda, à arte do que à cultura - o que nos é dado ver, (e sofrer), é
catastrófico.
Faço aqui um parêntesis para falar de
mim, que sou quem melhor me conhece e, por isso, me uso, quase
sacrificialmente, como exemplo e ilustração potenciada.
Há muitos anos, estando eu nos píncaros
da adolescência, rapazola incapaz de decidir ser o que quer que fosse - ou
porque não tivesse vontade específica nem para grandes ou pequenas decisões; ou
porque, arrastado pelas circunstâncias, um dia caí no caldeirão do desejo de
ser aquilo em que acabaria milagrosamente por me tornar, isto é, especialista
de nada, uma espécie de corpo desformatado, contentor putativo de outros corpos
ou de outras personas a precisarem de
corpo -, imaginei para mim, escrevia, um futuro de magia, espaço soberbo onde
tudo o que desejasse, lograria possuir. Bastava fazer vibrar a varinha de
condão, e o mundo todo se vergaria a meus pés. Mais do que o poder económico
e/ou financeiro, o que eu queria era aquela varinha. Ou aquela capacidade que,
como numa série de ficção científica que havia na altura, me desse a capacidade
de me deslocar através das partículas do espaço e do tempo, de me
tele-transportar daqui para ali, deste ano para aqueloutro. Isso era, por
aqueles dias, para mim, o cúmulo da felicidade que, no fundo, é aquilo que
todos desejamos.
Desiludido com essa impossibilidade,
aprendi o que é a ficção e fixei-me na realidade comezinha e sem esperança de
outros voares do dia a dia.
Militante da humanidade, quis ser como
aqueles que via nas revistas missionárias, e desejei ser preto, o preto mais
preto que pudesse, daqueles com dentes de lâmpada acesa no sorriso, igual aos
meus amigos segregados que chegavam das áfricas distantes. Eu que tinha entre
vizinhos uma comunidade cigana, não conhecia o racismo e a segregação, que só
conheci aquando da chegada dessa extensa comunidade.
A verdade, é que nunca me passara pela
cabeça ser actor. Mas logo que a decisão, ela própria, de forma tranquila me
tomou, logo soube a segregação que teria de sofrer: o preto que outrora desejei
ser, concretizava-se naquela não-decisão, mas de uma outra maneira, como o
actor amador que fazia de rei Baltazar na Sociedade Dez de Agosto e de quem me
escondia ao colo da minha mãe; ou como o meu vizinho cigano com quem jogava a
bola, e que se levantava de madrugada para ir para a feira e que, por isso, não
ia à escola.
Por aqueles tempos a vida não era fácil
para ninguém, em nenhuma área, mais ainda para os filhos de trabalhadores pouco
escolarizados que os meus pais eram, gente que sobrevivia graças ao seu talento
para as chamadas artes menores que praticavam a troco de salário miúdo, a
dedicação que imputavam a esse fazer, e à capacidade para aprender (com gosto) o
gesto seguinte dessa cadeia de sabedoria
Antes da minha não-decisão, tal como
todos os pais, também os meus ambicionaram para mim um paraíso na terra:
enfermeiro ou coisa assim, uma coisa entre a profissão e a missão, entre o
ganhar a vida e o salvar a vida: a nossa e a dos outros.
Eu próprio acreditei, num determinado
momento, que esse poderia ser o meu caminho, a enfermagem pois, porque tinha
uma avó com pernas doentes e achava que podia, praticando essa arte, fazer dela
a minha primeira salvação.
Mas, tranquilamente, sem me dar conta, um
palco se atravessou no meu caminho.
No local de trabalho do meu pai e da
minha mãe, existia um palco e uma pequena sala de teatro. E havia o Sr. Jaime,
carpinteiro de ofício, fumador inveterado e tocador de viola, que era capaz,
pela utilização da precária máquina cénica que naquele palco havia, de fazer
aparecer, ora uma floresta em grandes telões colados às paredes do palco, ora,
logo a seguir, mal a cortina fechava e imediatamente reabria, uma formosa sala,
com todo o mobiliário e demais quinquilharia que lhe associamos. O Sr. Jaime mostrou-me
a magia da cena e a sua possibilidade real de transporte mágico, que a tal série
de ficção científica da TV tinha, e pela qual me apaixonei tempos antes. E o
palco passou a ser o meu sítio preferido, local de teletransporte artesanal, abandonando
as pernas da minha avó à sua sorte.
O meu sítio preferido, o palco onde me
escondia e onde me revelava, passou a ser o sítio que me salvaria a vida. Eu
não o sabia, e mesmo não o sabendo, já o suspeitava.
Um dia destes, em conversa com um grupo
de rapazes e raparigas de quinze anos que quiseram conversar comigo a propósito
destas vidas, perguntava-lhes para que servia o teatro.
Estava a ser mau, porque essa é uma
pergunta que me acompanha desde sempre, e para a qual não encontro resposta
ajustada que me satisfaça em pleno. Vou dando, a mim próprio, a resposta que me
interessa momento a momento, mesmo que a resposta saia coxa e falte sempre
tanta coisa para explicitar. E eles, coitados, entre a espada da pergunta e a
parede da resposta, falaram-me do que significava para eles, o teatro. Excepto
uma miúda que, educadamente, de braço no ar, esperou pacientemente que eu lhe
desse a palavra. E quando lha dei, disse-me que o teatro, que deveria servir
para todas as coisas que tinham sido ditas e outras de que se não lembrava, servia
(ou servira) para lhe salvar a vida. E contou-me a sua história e explicou-me o
milagre que o teatro operara em si, menina miraculada.
Eu, confesso, fui sempre um pouco mais
ambicioso do que aquela menina, porque pensei salvar a vida dos outros com a
prática desta arte, pondo à frente de qualquer ambição pessoal, essa outra.
Fui para actor com sentido de missão, com
a memória alimentada pelas histórias dos missionários barbudos que lia nas
revistas das missões religiosas, que arriscavam a saúde e a vida para chegar às
comunidades mais longínquas e desprotegidas que havia. E, tenho a certeza,
muitos como eu, são actores pelas mesmíssimas razões porque eu o fui. A ideia
da descentralização teatral protagonizada por Mário Barradas e os seus
companheiros do Centro Cultural de Évora, e talvez, antes dele, por António
Pedro e o TEP, aparecerem como uma resposta às minhas ambições, aos meus
desejos de realização pessoal. Apesar da vontade, o caminho, para mim, foi
penoso por razões que não cabem neste testemunho. Mas fi-lo.
Reconheço, hoje, em inúmeros dos meus
jovens e queridíssimos amigos actores que tenho ajudado a fazer crescer, o mesmo
desejo que tive depois da decisão tomada, e sinto-me feliz com a manifestação desse
desejo e, mais ainda, com a procura desse desígnio: salvar vidas pelo teatro.
Mesmo que o teatro comece por salvar a nossa, como me lembrou a minha recém-amiguinha
de quinze anos.
Agora, a maior parte dos meus camaradas
de profissão, que na verdade nem profissão reconhecida é, (toda a gente pode
entrar por este território profissional adentro, como raposa por vinha
vindimada, sem pedidos de esclarecimento ou cédulas de qualquer espécie...),
estão no limiar de salvar a sua própria vida, numa fona para encontrar o
salário (de miséria) seguinte, a refeição seguinte, a dignidade adiada.
A arte não é hoje vista como coisa
salvadora. Antes pelo contrário. A arte, e o teatro particularmente, são coisas
que pertencem agora ao universo das indústrias criativas, misturam-se no
ramalhete das coisas designadas por "entretenimento", coisa fabricada
com linha de montagem apensa. Industrializou-se, perdeu alma, paixão, espaço de
sobrevivência artística e, sobretudo, o ar que precisamos de respirar para
viver, ou seja, a coisa mais importante das nossas vidas. Querem que repitamos
gestos como numa linha de montagem qualquer. Gestos sem alma nem sentido
criativo. E depois, é esse objecto (outro vocábulo muito em voga) que circula
pelas salas sem dinheiro para programação. O estado, por demissão, apoia a itinerância
de objectos menores e, sendo assim, subsidia a itinerância do que é menor, às
vezes (muitas vezes) do que é medíocre, coisa ao lado da verdade, o postiço
sobre o postiço.
No fundo, o Estado, este Estado desde há
muitos anos, cumpre religiosamente o seu programa, primeiro de forma mais ou
menos sombria e encapotada, agora às claras.
Sem tempo a perder, o estado apressou-se
a colocar a cultura, e nela, as artes, as performativas e as outras, no sítio
onde querem que elas estejam, não deixando margem para dúvidas a ninguém. O
sonho que elas permitem realizar, mesmo que simplesmente sonho, é quimera
indesejável. A realidade quer-se dura e com os pés bem assentes no chão. Ao
homem compete criar riqueza, ponto final. Compete criar economia, capital:
custe o que custar, alienem-se os direitos que tenham de ser alienados. Tudo
vale para atingir esses fins. O capital do sonho, da narrativa fabulística, é
perda de tempo e, como já se disse, tempo é dinheiro e, hélas!, chegamos ao
cerne da questão.
E com a repetição estafada das mesmas
mentiras enfadonhas que já não apetece desmontar, sobre a subsidiodependência
das estruturas de criação teatral em Portugal e etc, a vox populi já tem assumido que é assim que tem de ser, (de que
outro modo?), e vamos todos, actantes e expectantes, de braço dado e às vezes
em conflito, descendo a escadaria do inferno. Restar-nos-à, (mas até quando?),
o resguardo da biblioteca, as histórias protegidas pela memória que o livro é.
Pelo livro antigo, que os mais novos criadores, poetas principalmente, ou pagam
as suas edições ou ficam a ver navios. E mesmo isso... Veja-se o que aconteceu
em Viana do Castelo e aos seus estaleiros navais. Ou seja, já nem ver navios
nos querem deixar ver.
Neste tempo em que a discussão se centra
na sensualidade dos poupadores, versus a sensualidade dos consumidores, assim
vamos.
Como o teatro é uma arte ancorada no
humano, o logro é uma fatalidade humana incontornável.
Em vez de salvarmos vidas, com este
desinvestimento galopante, estamos a participar, como figurantes mal pagos, num
estupendo funeral. A encenação é pouco inspirada, a produção repetitiva, mas a
conclusão é incontornável.
Há na prática teatral uma espécie de
espiral negativa. Mesmo que alguns golpes sejam desferidos em sentido contrário
por alguns criadores e actores extraordinários que não se acomodam, o movimento
geral encaminha-nos para um maior empobrecimento. E isso contamina os
espectadores que, por força das campanhas de intoxicação que sofrem vindas de
uma sociedade que cada vez mais é consumista e imediatista, não exige uma outra
elevação e satisfaz-se com o que é menor.
E nesta espiral recessiva vamos
embrutecendo, cada vez menos capazes de imaginar o mundo com outras cores, com
outros sentidos, com outros desejos, que não apenas o de sobrevivência. O
teatro é uma das vítimas, e com ele, todos os que o fazem e que o expectam.
Verdade seja diga, que em todos nós,
creio, há a certeza de que o teatro, como arte com milhares de anos, tantos
quantos os que tem o homem, há-de sobreviver. Muito para lá dos dinossauros
desaparecidos, do dilúvio.
Essa certeza mantém-nos vivos, de pé como
as árvores, ainda que anestesiados.
Mas que importa isso? Estamos assim desde
Guterres.
Já tinha dito isto?
Não há ninguém que nos acorde? Que junte
os nossos pedaços estilhaçados e nos reconstrua?
Ninguém?
antonioduraes
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