sexta-feira, maio 16, 2014

conchita

Antigamente, e ao dizer isto sinto-me como a velhinha do anúncio do continente a falar ‘’do meu tempo, do meu tempo...’’, o festival da canção, primeiro, e o eurofestival, depois, eram momentos de grande efervescência artística, de polémica mesmo, que davam azo a alguns conflitos e diatribes musicais, tendo algumas delas ficado para a história. Se não para a grande história da música, pelo menos para a história dos festivais, viajando a bordo da importância que o público sentia por este género de programas televisivos.
Também foi devido a essas polémicas e respectivas diatribes, que a atenção do público em geral se manteve centrada neste evento, e fez dele um acontecimento musical de relevância extraordinária.
Com o desenrolar do tempo, a importância do festival, - primeiro o nosso e, logo, por arrastamento, o outro -, foi-se desvanecendo, foi ficando na gaveta das coisas televisivas de que se tinha uma memória vaga, mas que não interessava ver, e até, as mais das vezes, se evitava ver.
Paralelamente, corria a sensação, sobretudo durante o período do estado novo, de que havia alguma perseguição à ditadura portuguesa, uma espécie de represália internacional presente em cada votação, que relegava a representação portuguesa para o fundo da tabela, onde a nosso orgulho batia em cada eurofestival... Contudo, chegada a luz da liberdade, nem por isso chegaram os votos dos países eurofestivaleiros... Mas essas são outras contas...
Associado a este desinteresse, assistiu-se também à debandada dos melhores compositores deste género de música e da música que se associa a um festival e logo, ao seu lógico deterioramento.
A sensação que se tem agora quando se abre o frigorífico altamente tecnológico dos festivais, sobretudo o da produção nternacional, é a imagem de canções espreitando, mas fora do prazo de validade, decadentes, velhas, fáceis.
Contudo, no meio do marasmo, do monte de trastes musicais sem utilidade nenhuma, de vez em quando, como no poema de Manuel Alegre, há sempre alguém(uma) que resiste, há sempre alguém(uma) que diz não.
Este ano, com a representação nacional entregue a uma menina chamada Suzy que, iluminada pela música inspirada de Emanuel, clamava a alta voz, nem sempre com suficiente afinação, "eu quero ser tua", ganhou uma canção e uma intérprete austríaca, chamada Conchita. De relevante nela, o facto de ser portadora de uma barba capaz de fazer inveja o mais imberbe rapazola.
Não faço ideia do valor artístico da senhor(ora)/ e da canção que defendeu, mas a presença da criatura, tal como aqui há tempos aconteceu com um transexual israelita, creio, reabriu a discussão acerca da igualdade de géneros. Com a vitória de Conchita percebemos o quanto nos falta avançar para uma tolerância realmente não condicionada.
Dizem-me que além de tudo, o rapaz(iga) até nem desafina.
Mas nesta equação musical, extraordinariamente, isso até é o que menos importa.

Talvez seja mais interessante verificar, à boleia de Conchita em abstracto, o que é que nos falta crescer em direcção a uma humanidade mais ampla, mais inclusora, mais livre.