domingo, dezembro 19, 2010

a propósito de O Mundo (Shijie), um filme de Jia Zhang Ke

''Quem é que tem um penso?''

O grito inicial da bailarina magoada no pé, (os sapatos chineses, sabe-se, não chegam nem aos calcanhares dos sapatos portugueses, por exemplo. Fazem bolhas e, ademais, em dias de chuva deixam entrar água), ecoa durante o filme todo, mesmo quando, sem vida, a bailarina, agra cadáver a congelar na neve da rua, reconhece que a morte é só o começo de alguma coisa, vá lá saber-se do quê: liberdade, redenção, o que quer que a morte seja. Ou possa ser.

Pelo meio, no meio de tudo, omnipresente, um mundo em plena Pequim, a metrópole ultra-supra-ultra, a grande casa em construção permanente, um pequeno mundo de uns quantos hectares, uma coisa acrescentada, imposta na paisagem chinesa, manta de retalhos de outros mundos, pedaços de mundo-de-postal-ilustrado acrescentados à grandiosidade de Pequim, parque de diversões de mundividência, uma espécie de babel arquitectónica e monumental onde tantas línguas se cruzam, o mandarim nativo e o ucraniano não tão longínquo quanto isso, o amor sem espaço e a tentação mundana, a prisão e o espaço vazio, a torre Eiffel e a praça de S. Pedro, deus e mao-tze-tung, ou o que resta da memoria dele num mural de passagem, visão e corpo a socializar.

E a cozer tudo isto, ou o tanto que não está plasmado nestas considerações erráticas, o espectáculo, o mundo representado de uma certa maneira, daquela maneira.

Tão, a bailarina que nos conduz pelo filme todo, é uma artista. Não na concepção da artista autora da sua linguagem, uma portadora e falante da sua própria voz, mas a intérprete de uma determinada visão do mundo, a que se dá - quase sacrificialmente - na visão de um outro, mesmo que a transcendência não seja o objectivo da sua acção criativa, mas apenas a passagem das horas, como se o tempo fosse uma oração obrigatória, para quem uns quantos escolhidos, contribuem com o melhor de si. Louvável trabalho, mas nem por isso, como sabemos, grande arte.

Mas Tao, dizia, é uma artista, uma bailarina que se entrega ao seu trabalho tão específico, numa companhia de dança e de animação que tem espaço num parque sui generis nos arredores de Pequim, o parque temático O NOSSO MUNDO, uma espécie de Bracalândia sem diversões radicais nem nanotecnologia, onde se ergueram uns quantos mamarrachos, a torre Eiffel, já disse, lado a lado com a Tower Bridge, a praça de São Pedro, no Vaticano, e as pirâmides do Egipto e de outros tantos monumentos visitados por muitos chineses e demais turistas.

O seu namorado, Taisheng, é segurança do parque.

A vida é, aparentemente, pacata e calma, pelo menos nas imagens iniciais do filme, espaçadas e luminosas, inspiração e expiração repousada, não deixando transparecer o quanto de prisão o filme se prepara para revelar naquela imagem aberta e longínqua. E ei-lo que corre e decorre já num espaço onde a liberdade parece ser a coisa mais presente e visível em tal lugar. Aquele sítio luxuoso, paredes meias com a decrepitude dos bastidores, um sítio onde a vida tem um lugar aparentemente privilegiado, onde a existência sensual do espectáculo se acende e se extingue numa duplicação de imagens que pretende demarcar o território íntimo do espaço público, o palco do back stage, o parque de diversões dos pequenos habitáculos onde vivem as personagens, sem espaço nem intimidade. Expostos. Em permanente exposição. Como artistas (os do espectáculo) e cidadãos. Como num talho. À venda. Carcaças infestadas de moscas.

O bucolismo inicial, (a expressão não é a mais corecta mas na circunstância, serve), a narrativa instalada e distendida, servida (mas quem sou eu para o dizer… ) por uma fotografia contrastada de cores vivas e brilhantes, por uma edição, ou montagem muito respirada, por uma energia que, por estar distante de nós, no imaginário e no contexto cultural, nos toca, nos anima, pela composição poética que convoca mas também pelo afago que prodigaliza aos nossos sentidos, articulando-jogando com os cenários disponíveis e colocando-os no plano onírico, vai-nos surpreendendo, vai-nos convencendo e preparando (na despreparação se formos desconfiando de tanta harmonia) para uma mudança brutal que se constrói planificadamente, soltando informações esparsas, primeiro sem sentido aparente, e depois articulando sentidos. E durante quase três quartos do filme é assim que a teia da vida se tece. Os três primeiros quartos do filme funcionam como efeito que oculta alguma coisa, uma tragédia escondida que engorda nas informações libertadas, situações acontecidas fora de campo, ou seja, fora da imagem, fora do nosso olhar, mas que vão desenhando a situação trágica com a paciênca do tecelão, fornecendo a informação essencial, e deixando que, longe do nosso olhar, a acção violenta aconteça, expluda e nos encaminhe na passividade da acção para o patamar seguinte da crueldade.