segunda-feira, novembro 23, 2009

uma história com Mário Barradas, como se fosse uma homenagem

Não sei o que nos passara pela cabeça. Naquele dia, estávamos todos, uma cambada de putos, a jogar a bola no Salão Nobre do Teatro Garcia de Resende, em Évora. Ora, já se sabe, um Salão Nobre não serve para que nele se jogue à bola. É perigoso. Não que o do Garcia de Resende tivesse muita talha dourada para espatifar, nem muitas minudências que pudessem ser destruídas, «credo!, aqui del rei que partiram o candelabro». E mesmo que tivesse. Nós queríamos lá saber. Éramos uma cambada de selvagens a jogar à bola com toda a vontade, fazendo de cada lance um caso de vida ou de morte. Aquela era, naquele momento, a coisa mais importante do mundo e assim é que estava bem.
Importa dizer, à laia de explicação, que havia por lá uma bola – pacata bola de borracha, que mesmo que por muito afinco com que a chutássemos, pouco poderia partir – porque esse objecto era instrumento obrigatório dos exercícios que, com o Mário Barradas, trabalhávamos nessa fase da nossa formação. Estávamos a improvisar a partir de máscaras, qualquer coisa que nos era proposto fazer acontecer, ao nosso corpo, à nossa voz, a tudo, a partir de uma máscara que nos era oferecida. Umas máscaras velhas, de plástico, que já haviam percorrido outros rostos, já haviam iluminado outras almas. E, lá está, havia uma bola. Que às vezes era arremessada pelo Mário a cada um de nós. Ou seja, era uma bola que fazia perguntas. Que sinalizava perguntas. Por exemplo: quem és tu? E a máscara, que éramos nós, tinha de encontrar uma resposta, ou várias respostas se entendíamos a pergunta como coisa mais complexa.
Por isso é que estava ali, naquele espaço impróprio, uma bola.
E estávamos nós naquilo, naquele afinco, quando chega O Velho. Nós, em surdina, chamávamos-lhe assim: O Velho. Mas O Velho com maiúscula. O Velho com o respeito devido aos teimosos, aos intransigentes, aos destemidos, aos do «antes quebrar que torcer», mesmo.
Bem, chega O Velho e nós a jogar à bola. Coisa absolutamente proibida pela D. Inácia, uma espécie de mordoma do Teatro Garcia de Resende. Mordoma ou guarda, vigilante, cão-polícia (com todo o respeito), autoridade enfim.
(Do que eu me fui agora lembrar. Da D. Inácia. O que será feito dela? Terá já desistido disto? Terá regressado à terrinha? Ela que, se bem me lembro, era do norte.)
Bom, O Velho entra no Salão antes da hora, e nós naquilo.
Com a chegada dele, parámos, surpreendidos.
Ou como diria o Cesariny,
«e esta? não era costume
personagem tão nobre entrar assim
quando a peça vai ainda no ensaio…»
O ensaio, aqui, já se compreende, era a jogatana.
E ali estávamos nós, naquela fracção de segundo, apanhados em flagrante, à espera da reprimenda, coisa bem berrada, e o Mário, nada! Calado que nem um rato. Se não estava a fumar, deve ter puxado por um cigarro, que naquele tempo podia-se fumar nos teatros, em qualquer sítio, creio, até nos Salões por mais Nobres que fossem.
E quando a boca dele se abriu, calculávamos nós, para a tareia verbal, disse: «passa aí a bola». Com um sotaquezinho no «ó» da palavra bola. Não como ele fazia quando nos lançava a bola, decidida, que fazia perguntas, a bola lá foi ao encontro dele, pin pin pin pingona, tímida. Enquanto a mão manuseava o cigarro – tinha de estar a fumar… só podia – os pés começaram a dar toques na bola, desajeitados toques, mas toques. A bola ganhou ânimo e no instante seguinte estava ele a passá-la a um de nós e a pedi-la de novo. E a fazer fintas ao que estava mais próximo. Às raparigas não foi difícil enganá-las, mesmo ele, sem especial jeito para o jogo. O pior foi quando o entusiasmo o levou a querer fintar os rapazes mais sabidolas.
Escusado será dizer que de um momento para o outro estávamos todos a correr que nem almas perdidas naquele Salão Nobre, mascarado de Estádio da Luz. Um camarada mais jeitosinho para as coisas do futebol, num momento da peladinha, ganhou a bola e fez duas fintas malandras – e corajosas – ao Mário, que sentiu a humilhação. Vai daí, atacou o gozador com mais ânimo, de modo a repor a dignidade futebolística perdida. O nosso companheiro fez-lhe outra finta, daquelas que humilham mesmo e, mais à frente, já junto à porta, deu-lhe a cheirar a bola. Pô-la (parecia) ao alcance do seu pé, esquerdo ou direito, não me lembro. O Mário viu ali uma oportunidade de redenção e caiu na esparrela. Com um pouco mais de afinco estendeu a perna para lhe tirar a bola. Só que, quando o pé chegou ao sítio onde a bola deveria estar, já ela estava a quilómetros, raios a partam, e em seu lugar estava, porra!, a esquina da parede. O pé do Mário bateu no gesso com violência. «Ai Jesus!, que O Velho deu cabo do pé», pensámos. E O Velho, disfarçando a dor, o embaraço, a fazer-se forte, disse, ou gemeu, entre dentes: «vamos trabalhar, cambada, vamos trabalhar, que já estamos atrasados». E o sotaque a brilhar numa curva da língua.
Sentou-se, escondido, atrás da sua mesa e trabalhámos.
A sessão terminou mais cedo que o habitual, porque o Mário queria dar-nos um «prémio» pelo fantástico trabalho que realizáramos nessa tarde. Porreiro. Feriado. E a história da bola foi esquecida.
À noite havia espectáculo, ou qualquer outra coisa no Teatro. Nós muitas vezes, para lá de passarmos o dia na escola, às vezes, à noite, fazíamos trabalho no teatro. Como muitas vezes acontecia, o Mário estava presente, mesmo se não estivesse directamente envolvido na actividade que lá se desenrolava. Mas, hélas, naquela noite, e muletas e com o pé engessado.
Conclusão: o Velho aguentara uma luxação ou que raio fora aquilo, toda a tarde, sem dar parte de fraco e, já não suportando as dores, mandara-nos embora, e ido ao hospital. Creio que com a D. Inácia, a quem ele terá contado o episódio, que o respeitinho era muito bonito. Ela terá dito que era bem feito, que o salão não era para nele se jogar a bola e sabe-se lá que mais.
A D. Inácia passou a vigar-nos de muito mais perto. Por nossa culpa, é que o senhor doutor estava naquele estado, que o tínhamos enfeitiçado com o raio da bola.
O Mário também era assim.
Morreu na quinta-feira da semana passada.
Não digo paz à sua alma, porque o Mário não deveria gostar. Ele que tinha a alma mais intranquila de todas as almas que conheço. Paz o quê? Para quê? O homem quer-se a ferver, atento a todas as revoluções.

1 Comments:

Blogger Ana Mandillo said...

Querido Durães, eu estava nessa aula, e se me lembro desse episódio...
Bom reviver, esse momento fantástico que foi esse atelier de máscaras, que nos marcou a todos ,para sempre.
O Mário, dizia muito bem de ti e do trabalho que estás a desenvolver.
As netas e filhos ficaram contentes com estas tuas palavras, a mim divertiram me, e remeteram me aquele momento, aquele atelier, tão rigorosamente dirigido.
Aqui se foi o Amigo.
A nós , penso que cabe continuarmos o nosso trabalho, melhor que nunca.
Um grande abraço Ana Mandillo

2:07 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home