sábado, fevereiro 07, 2009

instantâneos 1

Há uns tempos, fui almoçar, tardiamente, nos arredores do Mercado de Arroios, não muito longe da Praça do Chile. Lembrei-me de um amigo chileno em particular, e de um prato que ele cozinha com milho e carne e usas passas doces, enquanto percorria algumas ruas da zona à procura de um sítio com aspecto mais ou menos interessante, para comer qualquer coisa, pouca, que era essa precisamente a intenção, mesmo que levasse aquele bolo de milho na saliva. Encontrei um snack mais ou menos disponível, com lugar vazio, chamado Snack-Bar Castela, ou qualquer coisa semelhante. Entrei e sentei-me de costas para a TV. À minha frente, distante duas mesas de mim. sentou-se um senhor alourado, com o Correio da Manhã na mão. Abriu-o e começou a ler. O empregado estava entretido a conversar com um outro cliente. Dizia-lhe: se jogas assim no domingo, não ganhas. Eu olhei o interlocutor do empregado e não lhe vislumbrei ar de jogador. Só de for de damas, ou xadrez, pensei. Mas o empregado continuava; se jogas assim no domingo, é melhor nem entrares em campo. O que é que querias fazer com a entrada do F? Tás maluco ou quê? Depois é que percebi: o empregado queria tratar toda a gente como se estivesse no meio de uma narrativa shakespeareana, e fazia o erro na convocação da terceira pessoa. Queria ele dizer, na sua, que «se no domingo jogais assim, não ganhais», e por aí adiante. Pronto, fiquei mais descansado.
- Então o que é que queres comer?
Agora era comigo. Eu traduzi, antes de me ofender: «então o que é que quereis comer? Já escolhestes, senhor?»
- O que é que há, perguntei eu.
Ele trouxe a ementa e, hélas, em letras gordas, lá estava: cachupa.
- Há cachupa?
- E da boa, disse ele. A nossa cozinheira é caboverdiana e às quintas, há sempre cachupa rica.
- Então é isso mesmo que eu quero, disse eu, esquecido de que, o que eu queria mesmo, era qualquer coisa leve.
Na TV anunciavam mau tempo para um terço do território português. Diziam que havia estradas intransitáveis, e o pivot chamava o repórter em directo do local. O senhor louro tirou os olhos do jornal e olhou para a TV. Sorria.
- Tás-ta a rir?
E o homem loir sorriu ainda mais, enfiado no seu blusão de penas.
- Não sabias que em Portugal também cai neve?
O empregado falava para o homem loiro.
- Tás-ta a rir? Aquilo não é no pólo norte, pá. Aquilo é aqui. Nós somos muito grandes. Cai neve ali e faz sol noutro sítio qualquer.
- Aquil(i)o não é n(i)eve.
Era o loiro.
- Não é neve? Atão é o quê? Caspa?
- Aquil(i)o é uma brincad(i)eir(i)a.
- Num é neve? Mais de um metro de altura…
- Na beir(i)a da estr(i)ad(i)a... Varr(i)em-n(i)a par(i)a lá(i).
- Aquilo é neve, e melhor do que a que há na tua terra, pá.
Olá, chegou a cachupa. Bem boa. Quer dizer: cheira bem. Fumegante.
- N(i)e(i)v(i)ar, é quand(i)o esti(ã)o vi(ei)nte ci€nco graus ab(i)aix(i)o de z(i)er(i)o.
Bem boa a cachupa. Hum…
- Amanhã se jogas assim, não ganhas.
Um pedaço do mundo, reunido ali, naquele snack-bar Castela.
- Também queres cachupa?
- N(i)ão, obrig(uid)ad(i)o. Mas p(i)ode servi(e))r-me um bag(ui)aç(i)o.
Na TV, a Catarina Furtado, no intervalo do telejornal, fazia publicidade à Pantene.