quinta-feira, maio 27, 2010

descontentamentos

A moeda é, como se sabe, temperamental. E ciumenta. Diz-se (Cavaco disse-o) que a boa empurra a má. E tem, como se sabe, duas faces. De um lado a coroa, do outro a cara. Ou seja, de um lado o rosto, do outro a tremenda cabeleira (enquanto dura a juventude da tal moeda, que é nada. Por isso nunca se vêm moedas cabeludas, com rabo-de-cavalo ou coisas assim). Quando velha, a moeda não ostenta - do lado contrário à cara, que aí a terminologia mantém-se - a habitual careca, mas a tal coroa, se a carecada é relativa.

Vem isto a despropósito – hops! - da futebolização da sociedade portuguesa que, a pouco e pouco, vem resultando numa anormal conflitualidade, erguida em princípios pré-históricos, tipo olho-por-olho-dente-por-dente, num confronto perigoso porque convoca o que de mais selvagem existe em nós.

Esta lactente conflitualidade tem servido a politica comezinha que por aqui (e noutros lados) se pratica. Por enquanto ainda é coisa domesticável, o freio ainda lhe serve, e a mão ainda sabe como se exerce a pressão certa para a dominação que se deseja.

Mas esse domínio acabará um dia. Aliás, vai acabando, a pouco e pouco, talvez sem que se dê por isso, e sente-se quando menos se espera. Os políticos têm-no experimentado amiúde, mas aplicam a tactica do passo em frente, como aliás fazem, na esperança de que, entretanto, se descubra a solução milagrosa que, mesmo que não anule o desastre entretanto obtido, pelo menos o esconda aos olhos do público, e do, hélas, do voto; e eles, os políticos de sempre, podem emergir outra vez do pântano que vão construindo, quais sebastiões em dia de nevoeiro...

Por enquanto, o nosso descontentamento resulta de coisas menores. Por exemplo, se a selecção se treina covilhanamente penas durante 40 minutos e nos deixa um travo amargo na boca, na boca dos três mil portugueses que conseguiram, depois de horas intermináveis em filas, um ingressozinho para assistir ao convívio;

O nosso descontentamento resulta do facto da selecção não ter jogadores do Benfica em número significativo;

O nosso descontentamente resulta do facto de a nossa selecção ser, antes de mais, a equipa do senhor Jorge Mendes, que agencia 17 dos 24 jogadores selccionados;

O nosso descontemento resulta de sentirmos que Queiroz não tem mão para a cozinha;

E ficamos chateados. Pois claro que ficamos chateados.

Mas o nosso descontentamento, com raras excepções, ainda não resulta da necessidade de mudar a classe política que nos (des)governa, cumprindo a lei da moeda, a boa lança fora a má, e por aí fora.

A futebolização da vida social portuguesa leva a isto. A corda rebentará no sítio mais inesperado. No sítio que nos aliena. Não, ainda, por força da crise económica (mas sobretudo política) que nos atinge. Ou seja, o outro lado da mesma moeda.

Por enquanto, o que é preciso é que a selecção jogue e nos convença.

Estaremos seguros se assim acontecer.

Sócrates pode dormir descansado.

Depois do Benfica, depois do Papa, depois de Mourinho, que a selecção cumpra a sua parte de alienação.

Depois logo se vê. Mas este depois não vai durar muito mais tempo.