terça-feira, fevereiro 06, 2007

ABORTO-3

Quando nos debates sobre a interrupção voluntária da gravidez se digladiam médicos pelo “sim” e pelo “não” há sempre alguém que tira da cartola o famoso “Juramento de Hipócrates”.
E invariavelmente fá-lo para, jogando com as palavras, chamar hipócritas aos médicos pelo “sim”.
Porém o famoso juramento, que aliás ninguém jura, está em completa contradição com os valores sociais da época.
Os médicos descreviam o aborto como prática corrente, mas em nenhum lado, nomeadamente na legislação da altura – leis de Licurgo ou de Sólon –, havia normas contra o aborto “ per se”.
O aborto, tal como o parto, era considerado então causa de impureza e fundamento de restrições á participação e entrada das mulheres em determinados actos e lugares.
Por isso a famosa injunção – “Tão pouco administrarei um veneno a alguém, mesmo que peçam que o faça, nem sugerirei semelhante acção. De igual modo, não darei a uma mulher um pessário para provocar um aborto.”- continua hoje com um sentido obscuro.
Mas se tal injunção, entendida como condenação do aborto, parece duvidosa á luz dos valores sociais da Grécia clássica, mais duvidosa se torna quando se sabe que no corpo dos textos hipocráticos se descrevem práticas abortivas aconselhadas pelo próprio.
“ Foi da seguinte maneira que se me deparou um embrião com seis dias. Uma parente minha possuía uma cantora muito valiosa que costumava ir com homens Era importante que essa rapariga não engravidasse perdendo assim o seu valor. Ora essa rapariga tinha ouvido dizer o tipo de coisas que as mulheres dizem umas ás outras – que, quando uma mulher vai conceber, a semente fica dentro dela e não sai para fora. Ela digeriu esta informação e manteve-se atenta. Um dia reparou que a semente não voltara a sair. Contou á sua ama e a história chegou-me aos ouvidos. Quando a ouvi, disse-lhe para se pôr aos pulos, tocando as nádegas com os calcanhares em cada pulo. Depois de ter feito isto não mais de sete vezes, ouviu-se um ruído, a semente caiu ao chão e a rapariga ficou a olhar para ela muito surpreendida.” O autor passa a seguir a descrever em pormenor a membrana e os coágulos de sangue do que parece ser um “conseptus” com sete a dez semanas, mas a que chama um “embrião com seis dias”. (citado de a História da Contracepção, de Angus McLaren, edição Terramar, pag.39).
Apesar de ser pouco provável que os escritos ainda existentes da escola hipocrática tenham sido escritos por Hipócrates de Cós, os exegetas da sua obra (Edelstein) consideram ser aquele texto uma interpolação da escola pitagórica, introduzido por motivos não médicos, mas filosóficos.
De qualquer forma, a invocação do famoso juramento e o seu uso no debate sobre a IVG reflecte mais a ignorância histórica do “não” que a hipocrisia do “sim”.