sexta-feira, outubro 20, 2006

o povo na rua

Na semana passada, o país assistiu a duas enormes manifestações populares, realizadas, curiosamente, a poucos quilómetros uma da outra.
Primeiro, no dia 12 de Agosto, em Lisboa, uma manifestação organizada pela CGTP, fez confluir à capital, cerca de 100 mil pessoas que marcharam ruidosamente entre o Terreiro do Paço e a Assembleia da Republica. Que a vida está difícil, gritavam e essa é uma verdade difícil de contrariar. O custo de vida aumenta a cada dia que passa, o trabalho é cada vez mais precário, os benefícios sociais estão em perda dia após dia, e por isso as pessoas, apesar do medo evidente, manifestaram-se.
(De tremendo, fica-me a imagem de um homem velho, reformado por certo, que, apoiado num segundo manifestante, marchava avenida acima com visíveis dificuldades, ainda a procissão ia no adro. Mas prometia chegar ao fim. Solidários, os companheiros que o seguiam iam-lhe dando o espaço de que necessitava para não se sentir constrangido.)
Eu estive a assistir ao início da manifestação, e cruzei-me com muita gente conhecida – só de braga, viajaram vinte e tal camionetas e muitas mais poderiam ter isso, não fora o desânimo que se sente instalado em algumas almas outrora inquietas, mas que se vão conformando ao pouco que ganham, incrédulos de uma mudança que outros ainda ousam reclamar.
No dia seguinte, sexta-feira 13, em Fátima, mais uns quantos milhares de portugueses, porventura bem mais que os cem mil da véspera, participaram numa outra manifestação popular, desta feita organizada pela Igreja Católica Portuguesa. Talvez que a razão da presença de tanta gente no santuário mariano, seja parecida com a que levou aqueles cem mil a Lisboa. Talvez até, e gosto de pensar assim, que algumas das pessoas que estiveram em Fátima, tenham estado na véspera em Lisboa. Talvez, por outro lado, que algumas das que era suposto terem ido a Lisboa, desacreditadas no poder humano para mudar as coisas, tenham antes optado por viajar para Fátima, quiçá mais esperançadas nas mudanças que o divino pode operar.
Entre as duas manifestações, para além do povo anónimo e dos anseios comuns (saúde, trabalho, felicidade), há bastas coisas a separá-las. As entidades organizadoras, pois, porventura com mais meios uma que a outra. Outro aspecto que as diferencia é a metodologia utilizada: uma organização resolveu espraiar o seu povo numa marcha com alguma extensão, o que dificulta muito mais as coisas, afinal é uma multidão que está em movimento. A outra decidiu juntá-la num único local, com infra-estruturas montadas em permanência. Uma é um pouco anárquica no seu funcionamento, improvisa, e apesar da sua laicidade, funciona um pouco ao Deus dará; a outra, a que caminha para Deus, tem preocupações estéticas, um cerimonial encenado, não há cá Deus dará para ninguém, religiosa sim, mas precavida e sem deixar espaço ao acaso, ao que deus determine para aquele momento e naquela situação.
Mas tanto numa como noutra, em todas pessoas, havia a esperança num futuro melhor, para lá da passividade humana ou da expectante expectativa no além.
Como me dizia um amigo que já não via há que tempos, (depois de ter galgado a manifestação para me falar em plena avenida da liberdade), quando se despedia de mim com um sorriso largo: agora tenho de continuar a luta. Ainda há muito caminho a percorrer. E enquanto eu fiquei a pensar no duplo significado daquele caminho, ele correu para o meio da multidão, sendo engolido por ela, ele mai-la sua bandeira.
Em Fátima, as velas, talvez tão bandeiras como aquela que o meu amigo segurava, choraram de cera no dia seguinte.