domingo, outubro 07, 2007

histórias de camarim (2)

No Teatro Garcia de Resende contava-se, em 1983 creio, uma estória engraçadíssima a propósito de um actor que lá trabalhara, gentilíssimo, homem asseado, e que depois do espectáculo terminado, já arrefecidas as palmas do público, ficava, para desespero de quem tinha que fechar a casa, mais de uma hora encerrado no camarim, com velas e fumos, a «desencarnar». Que isto de levar a personagem para casa não era com ele.
A expressão é, ainda hoje, muito utilizada, quer por profissionais do espectáculo, quer por espectadores, mais ou menos informados. ''Desencarnar''. Ou ''encarnar'' a personagem. Torná-la carne. E percebe-se. Mas por ser demasiado mistificante, é motivo de chacota. CAíu em desuso e ainda bem. Porque levava a interpretações disformes e a confusões inesperadas.
Há outra expressão, também muito em voga, que é na consideração literária que dela fazemos, muito menos radical: «vestir ou despir a personagem». Para os mais cépticos, talvez seja a expressão mais acertada, porque mais despida de uma espécie de religiosidade fora do sítio. A personagem, enquanto coisa que emana do actor, que a constrói com base em si mesmo (ou em alguém que observa ou inventa), por mais distante que ela esteja de si, tem uma roupa, um penteado, às vezes uma voz preparada (como o piano, afinal).
E havia ainda aquele encenador que, à despedida do ensaio, e nas breves apreciações àcerca do ensaio do dia seguinte, se queria que os actores realizassem um ensaio com roupa, pedia para que «trouxessem as personagens». Não que, felizmente, encarnassem as personagens.
No princípio era o verbo. Ora, o verbo é o texto. Muito mais, eternamente mais que a carne.