quinta-feira, março 19, 2015

VEM

Da história bíblica conta-se, recordar-se-ão, de entre tantos outros, aquele episódio dos irmãos desavindos, Abel e Caim, assim se chamavam, que por ciúmes e, certamente, tédio, se engalfinharam numa luta até à morte, porque Deus aceitava o sacrifício de um e desprezava o do outro. Diz-se a dado passo no Livro dos Livros, que a simpatia de Deus resultava do facto de um dos irmãos oferecer os melhores espécimes da sua produção, enquanto o outro mandava para o altar do sacrifício o que menos falta lhe fazia e, pior ainda, o que não tinha préstimo.
Resultado: Caím, roído de ciúmes e despeitado, matou Abel e fugiu à ira divina, sabe-se lá para onde, para um estrangeiro qualquer, longe do braço da justiça divina e, mais humanamente, longe do castigo dos pais, Adão e Eva, derrotados perante a perda de um filho.
Esta deve ser a primeira estória sobre irmãos desavindos que consta na grande história da humanidade, mesmo dando de barato que o mais provável é que não tenha acontecido.
Depois desses tempos, histórias acerca de irmãos desavindos é o que mais temos vindo a contar, e a ouvir contar.
Uma das últimas diz respeito aos irmãos russo e ucraniano, que têm vindo a dirimir entre si parte da herança comum, terras, mares e culturas, e cuja desavença teve hora marcada para terminar: o dia 15 de fevereiro passado, à meia-noite. Faz agora um mês. Nesse dia deveria cumprir-se o início do cessar-fogo negociado.
Ora, iniciar um cessar fogo, como todos, creio, com hora e dia marcado, é no mínimo bizarro. Faz-me impressão a leveza com que agora nos odiamos e,  no momento seguinte, deixamos de nos odiar. “Desodeio-te às tantas horas do dia tal, combinado”? Verificar-se-ia pouco tempo depois, que a hora marcada para o grande acontecimento era apenas a primeira das mil patranhas negociadas. E por isso, no intervalo que medeou o fim da negociação e o cessar-fogo, ninguém se deu ao trabalho de limpar o sangue das ruas, nem tirar o pó dos cadáveres jazentes no espaço público. Isto, porque ninguém acreditou na bondade da negociação. Muito ódio corria debaixo das pontes dos rancores locais, tanto-tanto que continua a correr. Não é um relógio qualquer que estanca o rio do desamor. E nem sequer a violência aumentou, como é costume nestas ocasiões, aproveitando os beligerantes as últimas horas de hostilidade oficial, para limpar o sebo a quem interessava que desaparecesse de circulação. Nem isso, porque não era preciso.
Irmãos desavindos uma vez, irmãos desavindos para sempre.
Olhemos, agora, por um momento, para o caso português.
Passos Coelho aconselhou um dia o seu irmão anónimo que emigrasse, porque aqui a coisa estava preta. E o irmão, quer dizer, os irmãos, emigraram. Aos magotes. Entre 2010 e 2013, oficialmente, 173 mil irmãos de Passos, e meus já agora, fizeram as trouxas e bazaram lá para fora.
Agora, para provar que o pior já passou, que a crise é passado, Passos desenhou um programa que, com pompa, anunciou. Designado por VEM, petit nom para VALORIZAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO EMIGRANTE, pretende receber pelo menos 50 emigrantes que há uns meses saíram miseravelmente daqui, na qualidade de empresários e, portanto, patrões. São 50 os projectos empreendedores financiados, e o estado investirá entre 10 e 20 mil euros em cada um deles. Uma fortuna, portanto.
Dando de barato o nome escolhido para o programa (quem é que inventará estes nomes?), Passos insiste em fazer mal as contas. É que cumprido o programa, e pensando que haverá dois portugueses por projecto, (um casal por exemplo, pelo menos ficam com dinheiro para um longo e higiénico cruzeiro), terminado o programa, ainda faltará fazer regressar - VEM EMIGRANTE, VEM - 172 mil e novecentos portugas.

Passos, porém, conta que as contas fiquem saldadas.

quinta-feira, março 12, 2015

consciência quin-zeinal

Todos os dias, em cada vinte e quatro horas percorridas, cento e quarenta portugueses, entretanto aquecidos pela sagrada fogueira do matrimónio, decidem denunciar essa combustão e aventurar-se na arrojada selva do celibatarismo. Cento e quarenta. Ou seja, setenta casais. O que poderia ser o gatilho perfeito para uma re-explosão urbana e um novo boom da construção, redunda, na maior parte dos casos, num regresso à casa paterna, para desespero dos progenitores. As razões serão muitas. Por exemplo: a perda do amor, deixado esquecido a ganhar bolor e outras microsubstancias no interior de uma gaveta qualquer; o esquecimento de compromissos, como se fossem a arqueologia de sentimentos, fora de tempo consideraos levianos, ou pior; os novos interesse maioritários; outras erupções amorosas e, por isso, outras sãs relações que, mais altas, se alevantam; e por aí fora.
Cento e quarenta portugueses que todos os dias de desligam, ligando-se certamente de uma outra maneira.
Zeinal Bava, o bravo Zeinal é, pode dizer-se em sã consciência, uma criatura desligada da realidade mesquinha do quotidiano da empresa de que, sendo CEO, transformou em inferno. Nem sempre desligado, parece, foi o que mostrou naquele inquérito parlamentar com que a Assembleia da Republica, através do seu canal televisivo, vem animando os dias dos portugueses mais desocupados.
Zeinal, ligando e desligando, é uma criatura quinZeinal. Em sã consciência, Zeinal Bava não se lembra de nada de mal que tenha feito e, muito menos, ou muito mais, nada do que fez. Mas que fez, ainda que não se lembre. O melhor CEO da Europa e arredores, como lhe chamou Mortágua, a deputada mais óbvia que investiga o titanic BES, destruíu uma data de empresas, a maior delas é a MEO, mas em contrapartida, não se lembra. Em sã consciência. Numa semana faz, na outra não se lembra.
A consciência, chamada à colação aqui há uns anos por Valentim Loureiro que profusamente declarou, a propósito de uma série de casos de corrupção, não ter consciência de ter pecado, tem nestas últimas semanas, sido amiúde convocada.
Em consciência, não se sabe se em sã, como reclama Zeinal, se em ruim consciência, também Passos Coelho não se sabia devedor à segurança social. Ou melhor, em consciência, nem tal coisa lhe passou pela cabeça. Quer dizer, sabia que devia, mas aguardava o momento em que cessasse funções públicas, para rectificar o esquecimento e, então sim, pagar o que já não devia, porque entretanto a dívida prescrevera, mas que ainda assim, pagaria, disse. Ora, acontece que uma investigação jornalística, creio que do jormal Público, fruto de uma denúncia certamente, ia trazer a público essa dívida já prescrita e, antes que a peça jornalística saísse (a investigação tb foi denunciada ao Sr. primeiro ministro, provavelmente por alguém dentro do órgão de comunicação investigador), Passos pagou. Porque em consciência não queria lesar o estado, nem pensar nisso. 
Quem entretanto prescreveu foi Mr Spock. O actor chamado Leonard Nimoy, que deu sopro à colossal personagem das orelhas bicudas, partiu para outro planeta na semana passada, com os dedos das mãos abertos em saudação mítica, paz, em sã consciência. Meio humano, meio vulcano, Mr. Spock, ou melhor, o actor que lhe deu corpo e representação, foi-se, prescreveu. Paz, Mr. Spock. Em consciência, perdemos um belo pedaço de história.