sexta-feira, setembro 19, 2014

um sobrinho que é enteado

Manuel Sobrinho tem 56 anos e, actualmente, é varredor no hospital de vila nova de gaia.
Na semana passada, porque estava programada uma visita do secretário de estado da saúde a essa unidade hospitalar, como agora se diz, tratando por cliente aquele que, até há bem pouco, era simplesmente doente a quem se deviam cuidados de saúde, a administração - quem mais poderia ser? - exigiu que Manuel Sobrinho, o tal varredor do hospital de Gaia, encostasse às boxes, ele e o seu carrinho de lixo fórmula um. A chefe dele, que entretanto se desculpou perante o sindicato chamado a testemunhar a segregação, argumentou ser ela, tb, uma simples funcionária na dependência de ordens a cumprir, mera correia de transmissão de directivas que vêm de algures, de cima certamente, dum qualquer Olimpo administrativo, a chefe dele, dizia, ordenou-lhe que recolhesse à casa mortuária ou ao refeitório, durante o tempo em que decorresse a tal visita governamental, de maneira a que o senhor secretário de estado o não visse a varrer. Argumentando que não tinha vergonha de nada que tivesse feito (não tinha roubado... na ingenuidade de Manuel Sorinho, só se roubasse é que devia esconder-se... santa ingenuidade...) recusou-se a recolher a qualquer um dos dois lugares sugeridos. De imediato, Sobrinho foi ameaçado com a instauração de um processo disciplinar se desobedecesse às ordens recebidas e, não fosse o diabo tecê-las, foi levado por dois seguranças que se mantiveram na periferia até o carro do tal secretário de estado desaparecer numa qualquer curva da visita.
Sobrinho, que não sei se teve efectivamente escolha entre a casa mortuária e o refeitório, pelo refeitório se ficou, que sempre é melhor o prometido café, que bebeu creio que à borla, que o cheiro a clorofórmio e a presença fria das câmaras frigoríficas e dos seus habitantes...
Longe de Gaia e destas aventuras, Carlos Moedas devidamente alavancado pela administração política portuguesa, foi para comissário europeu ou posto quejando, responsabilizar-se pela investigação, inovação e ciência. Não consta que perceba um boi do assunto, mas isso pouco imprta. Aliás, este lançamento das moedas nacionais na Europa administrativa tem alguma graça. Pelo que se ouve, e eu sei-o por experiência própria, este é o governo que sistematicamente desinveste na educação, na investigação (para além de tudo o mais, mas o assunto é este e, portanto, fique-mo-nos por aqui), e na ciência. Ora, bizarrice das bizarrices, este é o mesmíssimo governo que é chamado pelo patrão europeu a sacrificar um dos seus filhos, o mártir moedas, para a defesa do indefensável. Sim, porque a inestigação e a ciência, como - já agora – a educação e a cultura, são coisa de chupistas e subsidiodependentes.
(pausa para enxugar a saliva da raiva...)
Mas regressemos por momentos, e para acabar esta crónica, à primeira história.
É que receio ter-me esquecido de dizer que Manuel Sobrinho, o varredor do hospital de gaia, usa para se deslocar, um par de muletas. Uma junta médica declarou que ele tem trinta e sete por cento de incapacidade. Insuficente, por isso, para receber uma penção que o retire da rua e da companhia da bendita vassoura. Faz equilibrismo numa muleta apenas, para varrer as folhas dos caminhos. E era isso que a administração quis esconder do secretário de estado.

Uma vergonha, enfim. Uma não: duas.

terça-feira, setembro 09, 2014

dos banhos e dos bancos

Neste brevíssimo intervalo que, entretanto, a gosto decorreu, e durante o qual alguns de nós foram a banhos de uma forma mais ou menos tradicional, outros aproveitaram o tempo a dar grandes ou pequenas banhadas a si próprios, com gelo e sem gelo e, despudificados, publicaram esses banhos nas redes sociais como se a higiene de cada um fosse coisa pública e visível. Nada contra. Na sociedade de imagem em que todos, hoje mais do que nunca, vivemos, até a higiene de cada um se arrisca a ser notícia de jornal digital e coisa pública. Nos casos em apreço, duplos banhos esses, diria, que cumprem o gesto solidário e lúdico da lavagem diária da matéria física, ao mesmo tempo que se higieniza a alma. Lava-se o corpo, o mesmo corpo que é quem paga quando a cabeça não tem juízo, e dá-se outra cor à caridade solidária com endereço referenciado. Ou então, como testemunhei em inúmeras exposições, é coisa mais prosaica, arrepio para poupar um jantar, divertimento simplificado, ‘coisa louca’ para mais tarde recordar.
Sebre a caridade(zinha), tenho as maiores dúvidas. Serve para muitas coisas, claro, nomeadamene para fomentar o comércio maior das grandes superfícies em épocas específicas, e vergar a sazonalidade pobreta quando dá mais jeito. Pode ser trunfo (mosteiro e mistério) dos jerónimos desta vida, mas Caridade (com letra grande... gesto que não espera retorno... coisa não medida nem planeada à espera de reconhecimento...) é que não é. Esta caridade que se hidrata em banhos gelados, aparentemente mais nobre e fidalga, servindo solidariamente para ajudar, serve sobretudo para ilibar o Estado, ou os Estados, dos trabalhos e dos investimentos que lhe deveriam caber. O dinheiro não é de borracha, ok, sabê-mo-lo bem, e oh como o sabemos, mas essa tarefa central, curial, da administração, não deve ser coisa entregue à displicência dos humanos humores individuais. O corpo que se devia lavar é o corpo colectivo que todos constituimos, com o sabão que todos entregamos à função, de forma organizada, porque o corpo é fraco, como a carne que o compõe. Mas o Estado, ou os Estados, têm as prioridades trocadas. Prefere esfregar a sujidade da banca e do banqueiro, a investir na alma do cidadão ferido.
No entretanto, para além dessa água desperdiçada, muita outra correu debaixo da ponte, da nossa ponte. Tanta e tamanha que dificilmente recuperaremos a informação desperdiçada. Como se a realidade nos apanhasse de costas e sem aviso, nos rasteirasse no nossa desatenção.
É claro que vamos viver com os pecados que neste Agosto nos sobressaltaram, e durante muito tempo.
Sejam os resquícios da história do banco que, num dia era sólido como uma rocha e onde valia a pena investir, e no dia seguinte fraquejou, se veio abaixo das canetas e, por isso, salomonicamente, foi dividido em dois: o banco mau e o banco bom, céu e inferno no mesmo corpo, que a bi-polaridade também habita a grande banca e os bancos da nossa infelicidade.
A decisão de partir o banco ao meio, em duas metades, a sã e a podre, não lembrava nem ao menino Jesus. Deve ser isso a que se chama engenharia financeira criativa. Empreendedorismo financeiro. Não sei. E sobretudo não sei, não consigo perceber, porque é que mesmo na metade sã é necessário injectar quase cinco mil milhões de euros. Mas, não está sã? Ou a sanidade é uma coisa em abstracto, volátil como o juízo? Se é assim com a metade boa, imagino o escarcéu que não vai na metade má. Deve ser o inferno na cave do inferno.

Esperar para ver. E para pagar.