quinta-feira, junho 27, 2013

eu faço greve


Há muito pouco a fazer por um país, ou por um povo, que se renega, renegando a cultura que é a sua e que é, grosso modo, o que o distingue dos outros países e dos outros povos. Como se a cultura fosse uma febre que ataca todos aqueles que se abrigam naquele calor e se irmanam ali, os doentes e os sãos (ainda que com o desejo da doença) ao mesmo tempo. A cultura, essa coisa mais ou menos abstracta e indefinida, pode, contaminando-nos a todos, salvar-nos, resgatar-nos da brancura e lançar-nos para uma impureza colorida qualquer, que é a grande pátria onde nos alimentamos sem saber que nos estamos a alimentar. Ou sabendo...
Somos o que pensamos, como pensamos, na língua em que o fazemos. E pensamos de acordo com o que somos, no tempo em que vivemos.
Ora acontece que temos vindo a sofrer por dentro, (que é, entre os sítios mais profundos da nossa intimidade, aquele onde se sente menos, onde o grito é mais silencioso), de forma truncada, perversamente mascarada, as amputações que todos os dias nos apoucam e que, no conforto das conquistas alcançadas, na publicidade enganosa com que nos bombardeiam, julgávamos ser coisa impossível. Mesmo que agora, quase nos pareça coisa normal, inevitável.
Só que, dolorosamente, descobrimos que para lá dos anéis desgraçadamente perdidos - essa ideia de civilização educada - nem já os dedos conseguimos manter, ainda que insistam connosco na discussão acerca do verniz que devemos usar nas unhas.
É por isso que neste dia 27 importa dizer aos que mandam em nós, democrática ou ardilosamente eleitos, que não embarcamos mais nessa falácia. Que a cultura não é ornamento de salsa que pomos atras da orelha - coisa que embeleza e perfuma - enquanto nos enfiam pela calada da noite, na ditadura do forno. Dia 27 dizemos não à salsa e ao forno. E à discussão acerca do verniz. Reivindicamos os dedos e resgatamos os anéis, que são coisa de somenos, ao lado do esbanjamento de que são responsáveis os que nos governam (ou governaram) e de que são, a maior parte deles, pérfidos beneficiários.
Apelo aos trabalhadores da coisa cultural deste pais, que reforcem as trincheiras da resistência, neste glorioso dia de greve geral.
Se estivermos unidos, talvez consigamos uma força capaz de fazer reverter esta política de terra queimada que nos apouca.
TODOS À GREVE GERAL.
António Durães
(actor)

terça-feira, junho 11, 2013

estátuas...


Se Câmara Municipal decidiu, óptimo, está decidido.
O Cónego Melo terá, na rotunda do cemitério de monte de arcos - por decisão superior, autárquica, do governo da cidade - uma rotunda estátua, já há que tempos fundida. Coisa bem fundida, aliás, para os ideais da liberdade e da livre escolha. Refundida para ser mais concreto, e como gostam de dizer os brácaros... Pelo menos alguns... Os de cepa, mal criados... Os meus amigos.
A deliberação histórica foi obtida com os votos favoráveis dos socialistas, pese embora a abstenção do CDS e dos sociais-democratas, que são quem tem assento no governo da cidade. Fora destas contas, mas com posição pública bem definida, ou seja CONTRA, não votaram mas gostariam de ter votado, comunistas, bloquistas e demais esquerdalhice.
Ou seja, a estátua vai ser colocada ali, naquele lugar público, com o apoio singular do PS. O que quer dizer alguma coisa. Ou muita. Uma matéria polémica, pelos vistos, onde até o PSD e o CDS se abstiveram...
Uma parte da cidade arregaça as mangas e apressa-se em manifestos e abaixo-assinados; a outra cala-se, mete e fralda da camisa para dentro das calças, e segue caminho sabe-se lá para onde.
Eu, chegado aqui, faço o exercício da memória. Tento lembrar-me da figura do Cónego Melo, para lá da fama que todos lhe conhecem e, porventura até, do proveito que amigos meus - absolutamente confiáveis - asseguram que teve.
Conheci o Cónego numa visita guiada à Sé de Braga, a propósito da realização de um espectáculo de teatro pela Companhia de Teatro de Braga que eu acabaria, curiosamente, por não fazer. Contas de outro rosário. Como se estivesse em casa - e estava... - o Deão da Sé foi-nos indicando o caminho e orientando os passos, mostrando o que achava ser mais mostrável: o crescimento da Sé ao longo dos séculos; as marcas da importância deste e daquele arcebispo conforme as obras de melhoramento introduzidas; as que ele próprio tinha protagonizado e as marcas que deixava na arquitectura do espaço; quem estava sepultado e onde; que importância tinham tido os defuntos na historia do país, da cidade e da diocese; E chegados a um determinado sítio, estacou, fez suspense e, finalmente, batendo numa larga pedra da parede já não sei de que sala, acrescentou aos sonorosos afagos percutidos na pedra pela palma da mão íntima e clerical, um 'e para aqui, venho eu', concluíndo, enquanto nos olhava, desafiante. A ideia chocou-me, confesso. Um vivo a indicar a outros vivos, o seu lugar depois de morto. O lugar que, aparentemente, ele mesmo escolhera em lugar mais ou menos público. O seu lugar escolhido, não apenas na geografia daquela casa, mas na história, com letra maiúscula ou minúscula, não interessa agora discutir isso. Num assomo de vaidade indisfarçável, o homem investido agora no papel de actor no meio de actores, desafiava-os para aquele momento de conflito. Era, por momentos, o protagonista provocador, o que se insinua na intimidade dos outros, revelando o que de mais íntimo existirá neles, sem púdicidade: o misterioso momento depois do abandono da vida.
Errou. Pelo menos para já. Não está por detrás daquela pedra que afagava com lascívia com a palma da mão, deixando evidente nas costas dela, reverso de carinho, a dureza e ostentação do anel com pedra brilhante.
Ele não está lá. Ainda. Mas a sua imagem vai ficar, em latão, na rotunda de monte d’ arcos, cara a cara com os outros defuntos, admirados porventura com a vizinhança desequilibrada: todos deitados e ele ali, de pé, em cima de um caixote de betão, vestido de ferro.
Um amigo, um dia destes, reflectia comigo acerca dos gestos emblemáticos que marcavam a presidência do engenheiro Mesquita Machado, ambos relacionados com estátuas, curiosa coincidência, e com a redenção de figuras polémicas, capital do quase divino, senão mesmo do sobrenatural: começa a sua presidência redimindo Santos da Cunha e a estátua que o imortaliza em Maximinos; e acaba com Melo Peixoto, e a estátua que um grupo de saudosistas mandou fazer e pagou, em Monte d'Arcos.
Majestoso arranque; glorioso final.